As pessoas estão a sentir que a Cruz Vermelha não é apenas Totoloto

PorAntónio Monteiro,18 mai 2019 8:49

A Cruz Vermelha de Cabo Verde é a mais antiga organização de carácter humanitário existente em Cabo Verde. Foi criada 14 dias após a independência pelo segundo Decreto-lei do governo sob a designação “Associação da Cruz Vermelha de Cabo Verde”.

Nesta entrevista, o novo presidente Arlindo Carvalho fala do já longo percurso desta organização humanitária em Cabo Verde e das reformas institucionais já levadas a cabo no seu mandato, apresenta os projectos e programas em curso e faz o balanço da campanha de mobilização de fundos e donativos que a CVCV montou para apoiar as vítimas do ciclone Idai, em Moçambique.

A Cruz Vermelha está presente em Cabo Verde desde 1975. Qual tem sido o papel desta instituição no campo humanitário e social?

A Cruz Vermelha tem um estatuto próprio que deriva dos tratados internacionais, que é o de auxiliar dos poderes públicos no campo humanitário e social. É o mandato que temos e é neste âmbito que a Cruz Vermelho tem vindo a intervir aqui no país. No campo social trabalhamos mais, porque o país, e ainda bem, se encontra livre de uma situação de conflito armado e a missão prioritária de uma Cruz Vermelha é intervir em caso de conflito armado. Então desenvolvemos actividades a nível comunitário e a nível social. Neste momento temos vários projectos sociais: temos onze jardins infantis a funcionar, nove centros da terceira idade, dos quais dois são lares – um em São Vicente, que funciona 24 horas sobre 24, e um outro lar que funciona também a tempo inteiro em Tarrafal de São Nicolau. Mas temos mais projectos. Temos, por exemplo, a nível do país, centros de consulta para doenças crónicas como diabetes e hipertensão, trabalhamos com a questão do álcool e da droga, etc. Trabalhamos uma outra dimensão que é muito importante, enquanto auxiliar dos poderes públicos, que é apoiar os serviços de Estado na preparação das Forças Armadas.Nós é que desenvolvemos a formação a nível do direito internacional humanitário, tanto para as Forças Armadas como para a Polícia. Neste momento podemos dizer que o país já conta com vários quadros formados lá fora a nível do direito internacional humanitário. Temos parlamentares, magistrados, dirigentes da Cruz Vermelha, jornalistas, portanto, estamos a fazer aquilo que nos é solicitado enquanto auxiliar dos poderes. Mas a Cruz Vermelha tem intervenções em vários outros domínios, nomeadamente a nível do meio ambiente, prevenindo. Desenvolvemos acções de formação sobre a gestão de riscos, catástrofes e desastres. Trabalhamos também com a resiliência das comunidades. Trabalhamos com crianças a nível da cidadania, a nível dos direitos. Enfim, enquanto auxiliar no campo humanitário e social, estamos sempre presentes.

Foi eleito em Outubro de 2017 para um mandato de quatro anos. Quais são as linhas de força do seu programa e qual o estado actual do seu cumprimento?

Na altura não foi possível apresentar o programa, porque a forma como se organizavam as assembleias gerais não permitia que os candidatos apresentassem antecipada­mente a sua visão e os seus projectos. Só depois da nossa eleição é que pudemos conceber o nosso programa de mandato. Temos um programa muito ambicioso assente em cinco eixos que uma vez combinados, fazem parte da matriz. Temos o Eixo 1 que é governance, reforma e desenvolvimento institucional, depois temos um conjunto de projectos e programas que devem ser ou já estão desenvolvidos; temos o Eixo 2 que é juventude e gestão do voluntariado, que é uma questão muito importante para a sociedade nacional; temos o Eixo 3 que é o reforço da capacidade de intervenção nos domínios de catástrofes, emergência e campo social; temos o Eixo 4 que é cooperação, diplomacia e desenvolvimento de parcerias. Temos, por último, o Eixo 5 que é promoção, desenvolvimento da comunicação institucional. Portanto, são esses eixos que constituem o núcleo do programa e que vem sendo transformado em programas e projectos. Basta dizer que muitos dos eixos já estão a dar frutos, nomeadamente o Eixo 1 que tem a ver com o desenvolvimento institucional. Dotamos a Cruz Vermelha de um conjunto de regulamentos e normas e sobretudo de políticas humanitárias para o campo do direito humanitário, para o campo de restabelecimento de laços familiares, para as crianças, para a juventude e para outros casos. O mais importante é que conseguimos dotar a Sociedade Nacional de uma orgânica que não havia antes. E quando não existe uma orgânica, tudo se torna mais complicado. Por outro lado, conseguimos completar de uma forma satisfatória a orgânica. Aqui devo sublinhar uma parceria desenvolvida com o governo, que nos cedeu dois técnicos superiores, sendo que um deles é o Secretário-geral da Cruz Vermelha e o outro é o Director Administrativo e Financeiro. A nível dos conselhos locais, as câmaras municipais estão também a colaborar, cedendo não só recursos humanos, mas também recursos patrimoniais e financeiros. A juventude tem assento no estatutário mesmo no Movimento da Cruz Vermelha, mas não havia em Cabo Verde, na Sociedade Nacional. Tivemos primeiro que criar o Fórum Nacional da Juventude. Este Fórum já está criado. Agora estamos a trabalhar toda a plataforma do Fórum em que vamos ter uma representação nacional da juventude. Antes, para qualquer actividade, fazia-se uma indigitação. Ou seja, escolhia-se um jovem, e mandava-se, quando a nível do Movimento há regras próprias. Vamos ter representação a nível de cada conselho local a nível da ilha, depois a nível nacional. Esses jovens é que vão aprovar os seus próprios projectos e programas. A nível do voluntariado, que é a base da Cruz Vermelha, não encontramos uma base de dados. Tivemos que construir uma base de dados e desenvolver uma campanha de recenseamento a nível nacional que já está na sua recta final. Para dizer que estatutariamente, os conselhos locais, em número 19 actualmente, devem reunir-se anualmente em assembleia. Paradoxalmente, os conselhos locais estão há cerca de 8, 10 ou 12 anos sem realizar eleições. Então tivemos que criar uma comissão independente para as eleições, porque entendemos que, da prática anterior, qualquer dirigente poderá influenciar o sentido dos votos. Nós não queremos isso. Então criamos uma comissão independente que vai liderar todo o processo da realização das assembleias a nível nacional. E está para breve.

Desde o início do seu mandato tem apostado na reforma institucional da Cruz Vermelha. Por que se tornou necessária essa reforma se, como afirma, a Cruz Vermelha é uma instituição credível e sólida?

Isso resulta dos estudos que a nova direcção da Cruz Vermelha mandou fazer. Havia toda uma prática humanitária, sim, a Cruz Vermelha desenvolvia acções junto da sociedade civil apoiando instituições do Estado, mas nós entendemos que temos um alinhamento. Ou seja, a Cruz Vermelha é uma Sociedade Nacional, não é uma ONG. Temos de trabalhar com os poderes públicos, nomeadamente com a presidência da república, com o parlamento, com o governo, com as câmaras, com as empresas e trabalhar com outras organizações da sociedade civil, sobretudo de base comunitária. Faltava, portanto essa direcção. Por um lado, encontramos uma certa confusão entre aquilo que é pertença em termos de espaço de actuação de órgãos superiores e órgãos de base comunitária. Mas também, do nosso ponto de vista, havia uma confusão, entre aquilo que é governance e aquilo que é gestão. E tivemos que fazer essa separação. A nível da Cruz Vermelha em todos os países o modelo é único. Há a governance que normalmente é liderada pelos voluntários e há toda a administração que é assegurada por profissionais. Há um conjunto de regras e princípios que regem essas entidades. Portanto, tivemos que trabalhar essa dimensão. Há uma outra questão que trabalhamos e que descobrimos que apesar de todo esse tempo de existência da Cruz Vermelha, faltava muita coisa. Sobretudo a nível de normas, de regra, de princípios e regulamentos, então trabalhamos essa dimensão. Dotamos a Cruz Vermelha de uma orgânica própria de políticas humanitárias aprovada pelos órgãos superiores e de instrumentos de gestão também aprovados pelos órgãos competentes. Neste quadro podemos dizer que cumprimos uma boa parte. Tendo trabalhado sobretudo o perfil institucional, fica mais fácil trabalhar a outra parte que é mobilização de recursos. Tivemos que definir as políticas, montar toda uma estratégia de parceria a nível nacional e internacional e apresentar os projectos. Neste momento estamos na fase de apresentação dos projectos e posso dizer que já temos alguns projectos bem colocados e há uma recepção muito forte a nível dos nossos parceiros.

Que projectos são esses?

Estamos a falar, por exemplo, dos jogos sociais, que é a maior fonte de receita da Cruz Vermelha. Concebemos um projecto que ronda os 200 mil contos. Candidatamos agora a um programa do Movimento, que é um programa da Federação e do Comité Internacional num montante de 90 mil contos. Isso tudo para potencializar a nossa acção. Temos uma agenda muito forte para a África, vamos falar com os embaixadores sobretudo do Oriente e da Europa que estão sedeados em Dakar, apresentando os grandes projectos que temos para o país. Por exemplo, o projecto ligado ao sistema nacional de resposta às catástrofes, a escola nacional do socorrismo e a reforma do sector dos jogos. Porque nós entendemos que a nível da introdução das novas tecnologias, na abordagem de questões, a Cruz Vermelha de Cabo Verde ficou muito aquém. Ficou lesada, porque não se conseguiu introduzir na altura essas valências. E nós estamos a fazer esse trabalho. E os jogos sociais estão a caminhar bem. Basta dizer que no passado domingo, indo ao encontro de uma das grandes reivindicações dos apostadores, foi feita pela primeira vez em Cabo Verde a extração do Totoloto e do Jocker em directo e simultâneo na TCV e RCV. Por essa via vamos potenciar os jogos. Isso é uma parte. Uma outra parte é aquilo que tem a ver com o sistema actual dos jogos. Trata-se de um sistema mecânico e com uma logística muito pesada. O perfil actual dos jogos não se coaduna com a realidade dos jogos. Até porque não estamos em condições de fazer parte da grande família dos jogos de loteria a nível internacional. Porque, tendo em conta o seu modelo, os nossos jogos não são reconhecidos a nível internacional. Queremos acabar com os papéis e reduzir o tempo de entrada das apostas e mesmo facilitar a vida dos apostadores de outras ilhas. Veja, por exemplo, que no caso da Brava eles jogam até quarta-feira, Boa Vista parece que é até quinta. Mesmo aqui na Ilha de Santiago, somente na Praia é que se consegue jogar aos sábados até às 20 horas e não em todas as agências. Portanto, ainda este ano vamos avançar com o projecto de informatização dos jogos, pois, como disse, o actual modelo mecânico está desatualizado e devido às especificidades do país têm prejudicado os apostadores.

A CVCV montou uma campanha de mobilização de fundos e donativos para apoiar as vítimas do ciclone Idai e em conjunto com o governo enviou uma equipa médica por duas semanas a Moçambique. Qual o balanço desta campanha humanitária?

Nós tínhamos recebido directrizes da Federação Internacional no sentido de desenvolver uma campanha nacional a favor de Moçambique e ajudar a Sociedade Nacional da Cruz Vermelha de Moçambique. Mas o governo também teve a sua iniciativa e fomos lá num encontro com os seus parceiros e decidimos fazer uma mobilização conjunta de recursos que tinha vários níveis, nomeadamente o envio de uma equipa médica e a mobilização de recursos financeiros. A Cruz Vermelha ficou com a responsabilidade da mobilização de recursos financeiros. Basta dizer que abrimos contas em todos os bancos comerciais e até este momento arrecadamos cerca de cinco milhões de escudos cabo-verdianos, sem contar com os dez milhões do governo. Mas estamos agora a trabalhar uma campanha que vai na verdade superar todas as expectativas. No dia 27 de Julho a Cruz Vermelha vai realizar aqui na Praia, no Estádio da Várzea, um Mega Concerto de mobilização/angariação de fundos para Moçambique. Estamos a projectar arrecadar qualquer coisa como 12 milhões de escudos. Vamos trazer artistas da Europa e de outras partes do mundo e obviamente nacionais. Numa combinação Governo/Cruz Vermelha enviamos a Moçambique, por duas semanas, uma equipa de 12 pessoas entre médicos e enfermeiros. Pelos dados que eu recebi, tanto da Federação da Cruz Vermelha de Moçambique, como da Cruz Vermelha Portuguesa, os nossos profissionais estão de parabéns. Desenvolveram uma acção muito louvável e conseguiram mostrar que este país que é pequeno e de parcos recursos, é tamanho de coração. Conseguiu levar uma solidariedade a Moçambique num campo muito importante que é o da saúde. Estiveram lá duas semanas a trabalhar full-time. Tenho recebido muitas solicitações, em primeiro lugar pedindo a prorrogação da estadia na altura e agora solicitando que Cabo Verde envie mais enfermeiros, mais psicólogos e mais administradores. A nossa equipa está de parabéns, pois desenvolveu um trabalho meritório. Cabo Verde destacou-se ao lado de outras Sociedades Nacionais que estiveram em Moçambique e mesmo das equipas da Federação Internacional. Valeu a pena, pois trata-se da primeira missão humanitária da Cruz Vermelha de Cabo Verde dessa envergadura. Isso prova que podemos prepararnos também do ponto de vista interno, porque o país tem as suas fragilidades. Aquilo que aconteceu em Moçambique poderá acontecer também aqui em Cabo Verde.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019. 

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Autoria:António Monteiro,18 mai 2019 8:49

Editado porAndre Amaral  em  19 mai 2019 9:26

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