É gritante a tendência generalizada para a erotização da menina e da mulher. Mulher que é mulher, é poderosa. Terá de ser sexy. Provocante. E corresponder aos padrões de beleza socialmente instituídos. Eternamente jovem, alta, magra, cheia de curvas, “peituda”, “rabuda”, e mais outros tantos requisitos físicos fantasiosos que vão estandardizando as mulheres e engrossando a fila de seguidoras cronicamente insatisfeitas com o seu aspeto físico. Sofrem do que o psiquiatra e escritor Augusto Cury denomina de Síndrome de PIB - Síndrome do padrão inatingível de beleza.
A mulher é alvo preferencial de receitas milagrosas de perda de peso, de dicas para ter uma pele sempre bonita e jovem, cabelo viçoso, exercícios para ter o bumbum XXL da Georgina Rodriguez. Sacrifícios/ exigências/segredos na desenfreada competição para alcançar essa mulher fisicamente perfeita.
Narrativas loucas e contranatura. Seres vivos envelhecem. Seres humanos adquirem cabelos brancos. Engordam. Tem espinhas no rosto. Pelos. Celulites. “Pneus” e varizes. E, não é por isso, que valem menos que os outros. Conviveriam muito bem com essas características, se não fossem bombardeados por campanhas ensurdecedoras disparadas de todo o lado que ditam - isso tudo é feio, mau, indesejável e degradante. As mulheres estão reféns. Deslumbradas e inconscientes, participam ativamente nessa cobrança coletiva de perfeição, sem se dar conta dos perigos da sua objetificação.
A objetificação da mulher, nada mais é do que a sua desumanização. Quando a mulher se reduz a objeto de beleza e passa a ser percecionada como tal, cai numa tremenda emboscada. Um objeto não tem sentimentos, não tem inteligência, vontade nem direitos. E pior. Os objetos têm dono. São propriedade de alguém e estão à disposição de servir. Possuem um uso utilitário. O que se pode esperar de relações sociais quando se é vista de forma tão deturpada? Toxicidade. Abusos. Maus tratos. Ciúmes e sentimento de posse. De forma agravada, a sua morte. Estão aí as estatísticas que revelam as elevadas taxas de femicídio. Número de mulheres assassinadas em 2017 no mundo cerca de 87.000. Assassinadas por parceiros íntimos ou familiares próximos ronda os 50.000. Grande parte dessas mulheres são esvaziadas de vida quando decidem terminar a relação com seus companheiros.
Para além desses “danos colaterais” que muitas mulheres não vislumbram deixando-se embalar pelo canto da sereia, existem outros que igualmente podem lhes valer a saúde e a vida. Já sem falar nas questões de assédio sexual e moral de que são alvo.
A ditadura da beleza (emprestando o conceito a Augusto Cury) é um chão molhado e escorregadio onde tombam distraidamente meninas e mulheres. A excessiva preocupação com o corpo e em corresponder a um padrão estereotipado e pouco realista da mulher, muito tem conduzido a distúrbios alimentares como a anorexia; depressão e ansiedade; problemas de autoestima; para além de fenómenos como gordofobia e bullying.
A história das mulheres se confunde com a luta pela autonomia do seu próprio corpo e, consequentemente, da sua vida. Por imposição dos contextos sociais e épocas a que pertenciam, o seu corpo sempre foi objeto de disputa e tinha legalmente “proprietários”: pai, esposo, irmão. Passou por processos de socialização que a reduziam a um ser subordinado, dócil, objeto de prazer sexual, decoração e procriação. Fadinha do lar.
Séculos de lutas de movimentos feministas (realizadas por mulheres e homens) contribuíram para romper com o modelo patriarcal machista instaurado e discriminador da mulher. A penalização criminal da violação ao seu corpo, o direito ao divórcio, ao voto, ao trabalho remunerado, a capacidade decidir se quer ou não ter filhos, a liberdade de escolha sobre o seu destino e vários outros direitos humanos, económicos, legais e cívicos resultam de contestação e conquistas. No entanto, os direitos até então adquiridos ainda não são universais e nem tocam a todas as mulheres do mundo. É só ver o episódio ainda muito recente de Mahsa Amini, curda, iraniana, de 21 anos, detida e morta por ter deixado à vista fios do seu cabelo.
Os ganhos e as liberdades que dispomos ainda cheiram a sangue fresco de mulheres guilhotinadas e violentadas que lutaram sem no final conseguir regozijar dos resultados da sua luta. Sociedades mais livres, justas, dignas e com melhores seres humanos (masculinos e femininos).
Nos anos 60, uma das vagas de movimentos feministas travara uma feroz batalha contra os novos grilhões colocados às mulheres. Um repúdio público aos concursos de beleza feminina, aos sapatos de salto alto, maquiagens, e toda a parafernália de utensílios criados pela indústria da beleza direcionada propositadamente para o universo feminino reduzindo a mulher a uma espécie de bibelô. Mecanismos que só serviam para controlar o corpo feminino. Queimando os sutiãs, reagiam contra a tendência socialmente instaurada de eleger o corpo e a beleza da mulher como o principal atributo de sua valorização social. Temiam novas formas de escravidão da mulher.
Acredito que, atualmente, muitas das expetativas, desejos e ambições das mulheres, principalmente as adolescentes, em relação ao seu corpo resultem de construções sociais milimetricamente traçadas por uma indústria capitalista de beleza e moda insaciável que nada mais procura do que o lucro. Obreiros de fetiches. Promotores do consumismo. É preciso estarmos despertas e mais unidas. Debatermos com maior profundidade a identidade de género mulher e seus desafios. Precisamente para que a faminta busca/ostentação das curvas do corpo, não nos faça sermos apanhadas… na curva.
Antónia Môsso
Mindelo, 27/01/2023