“Temos de estar cientes do que nos afecta e do que potencialmente pode afectar-nos. É inevitável não parecermos alheados, como quem diz isto não tem muito a ver connosco”, diz Carlos Reis, conselheiro de segurança do Primeiro-Ministro ao Expresso das Ilhas. “Acredito que Cabo Verde deve acompanhar e levar a sério tudo o que, de maneiras mais directas ou indirectas, nos afecta, principalmente quando fazemos parte de comunidades, sentimos as pressões das migrações forçadas por causa dos conflitos armados e porque temos uma
responsabilidade e uma obrigação de nos posicionarmos nos espaços regionais e internacionais de uma forma coerente e clara”, continua. No fundo, a mensagem das autoridades cabo-verdianas é que estão a seguir o que está a acontecer na sub-região, mas sem alarmismos desnecessários.
Desde o colapso do “califado” na Síria e no Iraque, o Estado Islâmico está à procura de outros lugares onde possa erguer a bandeira negra. África, e especialmente o Sahel, é vulnerável. Os governos são fracos, impopulares e muitas vezes têm apenas um controlo ténue sobre partes remotas do território. Recentemente, Abu Bakr al-Baghdadi, líder do ISIS, num vídeo lançado a 29 de Abril, a primeira aparição em cinco anos, saudou os “irmãos do Burkina Faso e do Mali ... Nós damos-vos os parabéns por se terem juntado ao comboio do califado”.
Não se pode generalizar facilmente os grupos jihadistas africanos. Alguns são estritamente locais, tendo pegado em armas para lutar por terras agrícolas, ou contra governos locais corruptos. Alguns adoptam o rótulo “jihadista” apenas porque são muçulmanos. Muitos jovens que se juntam a estes grupos fazem-no porque foram roubados pelas autoridades ou espancados pela polícia, ou viram os amigos humilhados dessa maneira.
Outros grupos, como o al-Shabab na Somália, estão mergulhados nos ensinamentos da Al-Qaeda e têm a tendência de cometer atrocidades espectaculares, como o camião-bomba que matou quase 600 pessoas na capital Mogadíscio. Os grupos que levantam maiores preocupações são os que têm por objectivo manter o território. Um desdobramento do Boko Haram, por exemplo, está a construir um proto-califado no norte da Nigéria.
A verdade é que grupos jihadistas, de todas as variedades, estão a expandir o seu alcance no Sahel e à volta do lago Chade [O Sahel é uma cintura de 5.400 quilómetros, com cerca de 1.000 quilómetros de largura, que vai do Mar Vermelho até ao Oceano Atlântico. Começa, a Oriente, na Eritreia e vem para Ocidente atravessando o Sudão, o Chade, o Níger, o nordeste da Nigéria, o norte do Burkina Faso, passando pelo Mali, a Mauritânia e terminando no Senegal].
No ano passado, conflitos com jihadistas em África provocaram mais de 9.300 mortos, a maioria civis. São quase tantos quanto os que foram mortos no conflito com jihadistas na Síria e no Iraque juntos. Cerca de dois quintos dessas mortes ocorreram na Somália, onde o al-Shabab costuma detonar carros-bomba em ruas movimentadas. Muitas das outras vítimas registaram-se na Nigéria, onde o Boko Haram e a sua ramificação – a Província do Estado Islâmico da África Ocidental (ISWAP), têm por hábito disparar sobre os aldeões e decapitar trabalhadores da área da saúde.
No Níger, no Mali e no Burkina Faso, o número de pessoas mortas devido à violência relacionada com a jihad duplicou em cada um dos dois últimos anos, para mais de 1.100 em 2018. E a violência está a espalhar-se, transbordando fronteiras e ameaçando destruir pobres, estados frágeis com maus governantes e populações no geral. A longo prazo, “o Sahel é nossa maior preocupação”, diz ao The Economist Mark Lowcock, encarregado da ajuda de emergência na ONU.
“Preocupa-me a situação do Boko Haram”, sublinha Carlos Reis, “a Nigéria e os Camarões são dois países que estão a perder o comboio do desenvolvimento devido ao custo que têm de fazer permanentemente em relação ao combate ao radicalismo. Há muito dinheiro canalizado para o exército e forças de segurança que não são canalizados para o desenvolvimento”.
Já em Cabo Verde, na análise do conselheiro de segurança do chefe do governo cabo-verdiano, o ambiente relativamente à tolerância e à integração das liberdades religiosas, faz com que não haja nenhum elemento que faça sentir que há quaisquer hostilidades ou discursos que apontem para o perigo da radicalização.
“Acredito que temos um espaço de alguma tranquilidade”, diz Carlos Reis ao Expresso das Ilhas. “Mesmo os imigrantes da sub-região que vivem cá, reclamam de tudo menos da liberdade religiosa. E acredito que os cabo-verdianos não vêem uma religião como mais ameaçadora do que outras. Isso facilita o acompanhamento porque evita os discursos inflamados”.
Para as potências ocidentais, o medo dos refugiados é uma das principais razões porque estão a tentar estabilizar a região. A França tem 4.500 soldados combatendo jihadistas na África Ocidental, principalmente no Mali. A Alemanha e a Itália possuem cerca de 1.000 soldados em África. A Grã-Bretanha criou duas unidades especializadas de infantaria dedicadas a treinar soldados africanos na Nigéria e na Somália. A América, que está mais preocupada com o terrorismo do que com os fluxos de refugiados nesta parte do mundo, tem mais de 7.000 militares em África.
A maioria das tropas ocidentais não luta directamente contra os jihadistas - excepto na Somália, onde os mísseis lançados por drones mataram combatentes da al-Shabab. A maioria está a treinar forças locais. E geralmente precisam de começar pelo básico. Na Nigéria, por exemplo, os jihadistas conseguem chegar sorrateiramente e invadir as bases do exército simplesmente porque o mato à volta não foi limpo. Mas os esforços para conter a disseminação do jihadismo treinando exércitos locais ou matando líderes insurgentes, não estão a funcionar muito bem. Foi o que aconteceu no Mali. Em 2012, separatistas e jihadistas tuaregues aliados à Al-Qaeda saíram do deserto e conquistaram o norte do país usando armas roubadas dos arsenais da Líbia.
As tropas francesas conseguiram empurrá-los para fora das principais cidades. Mas nem o poder de fogo francês conseguiu derrotar os rebeldes, que simplesmente regressaram ao deserto e têm sobrevivido a uma campanha de contra-insurgência que dura há sete anos. Os especialistas de Paris chamam ao Mali o “Afeganistão da França”. As Nações Unidas têm, actualmente, mais de 16.000 capacetes azuis no Mali, 195 foram já mortos, tornando-se na missão de manutenção de paz mais perigosa desde 2013. No entretanto, os jihadistas continuaram a espalhar-se para o Níger e para o Burkina Faso.
O próprio governo do Mali mostrou pouco interesse em tentar restaurar a segurança na metade norte do país, contentando-se em manter o sul, rico. “Basicamente cederam o território e não estão dispostos a lutar “, disse, sob anonimato ao The Economist, um oficial do exército ocidental. Além disso, o governo permitiu a formação de milícias étnicas pró-governo que são responsáveis por um número cada vez maior de ataques a civis de grupos minoritários. Uma enxurrada de armas do Golfo da Guiné alimenta o caos. Há tantas metralhadoras de assalto no Mali que o preço caiu de 600 dólares, há dois anos, para 260 dólares nos dias de hoje.
Há outras vítimas destas milícias: as crianças-soldado voltaram a ser uma realidade na África Ocidental. Ainda na semana passada, quase 900 meninos e meninas que pertenciam às milícias que combatem o Boko Haram foram libertados, como anunciou a UNICEF. O grupo de 894 menores, 788 meninos e 106 meninas, integrava as filas da Força Operativa Civil Conjunta (CJTF, na sigla em inglês), uma milícia que oferecia apoio regular aos soldados no seu combate aos insurgentes islâmicos. A libertação deu-se em Madiguri, no noroeste da Nigéria.
“As crianças do noroeste da Nigéria são as mais afectadas por este conflito. Foram utilizadas pelos grupos armados como combatentes e como não combatentes e foram testemunhas de mortes, assassinatos e violência. Esta participação no conflito teve sérias implicações no seu bem-estar físico e psicológico”, declarou, em comunicado, o representante da UNICEF na Nigéria, Mohamed Fall.
Segundo a UNICEF, entre 2013 e 2017, os grupos paramilitares recrutaram mais de 3.500 crianças, muitas delas foram mortas, mutiladas e violadas. Apesar de não haver números oficiais, várias ONG apontam para cerca de 250 mil as crianças-soldado actualmente existentes em 17 países.
Entretanto, os governos e exércitos ocidentais começaram a concentrar-se menos no Mali e na Nigéria e mais no Níger e no Burkina Faso, com a esperança que esses países possam actuar como baluartes para deter a disseminação do jihadismo. “Temos uma janela de oportunidade para ajudar estes países a traçar uma linha que podem manter”, disse ao The Economist Andrew Young, embaixador da América em Burkina Faso.
No entanto, muitos dos erros cometidos no Mali estão também a ser cometidos no Burkina Faso. As milícias proliferam e começou um ciclo de violência étnica. Além disso, muito pouco está a ser feito para resolver os problemas subjacentes que alimentam o conflito, como maus anos agrícolas, má governação e pobreza. “A estratégia deve ser desenvolver alianças, apostar nos amigos. E quando falo em desenvolver alianças, é junto das comunidades, junto dos cidadãos”, diz Carlos Reis. “O Estado está demasiado distanciado das comunidades e como não pode declarar que eles são o inimigo, que não são, o inimigo facilmente de dissimula e está no meio das comunidades, quando a verdade é que o Estado também tem de estar”, reforça o conselheiro de segurança.
“O exercício do poder tem de estar entre as comunidades e muitas vezes não está. Quando deixa esses espaços vazios, os outros ocupam-nos. E esse espaço não pode ser apenas preenchido pelo exercício da autoridade tradicional, tem de ser o exercício de uma autoridade moderna, solidária, que não aparece só para dar ordens ou decretar leis e cobrar impostos ou fazer um equipamento social. Desenvolver um novo tipo de pacto que não deixe espaços vazios. É isso que acontece em países imensos como o Níger ou a Nigéria”, continua Carlos Reis.
“Por isso é que hoje, quando se discutem as questões securitárias, discutem-se muito as questões sociais. Seja a pensar na segurança interna, seja na segurança nacional”, reforça.
Na esteira da derrota em Mossul, no Iraque, Abu Bakr al-Baghdadi - o líder do Estado Islâmico - pediu aos partidários para evitarem viajar para o Iraque e para se concentrarem no fortalecimento das redes noutros lugares. Pediu também aos apoiantes para realizarem ataques em pequena escala, a estilo lobo solitário, nos países de origem. É inegável que o ISIS conseguiu criar uma marca poderosa e, embora a criação de um califado não tenha sido bem-sucedida, o apelo ideológico continua a ser uma poderosa inspiração para seguidores extremistas.
“Claro que o ISIS já mostrou ser capaz de se aproveitar de qualquer acção individual para dizer que está em todo o lado”, refere Carlos Reis. “Qualquer um que faça algo louco o suficiente, ou que provoque danos suficientes e com quem se possam identificar de alguma forma, eles aparecem a reivindicar e isto torna-os mais poderosos do que na realidade poderão ser, mas não é algo que se possa ignorar”.
Embora os alvos ocidentais continuem a ser a prioridade do ISIS, há riscos consideráveis para África, e Denys Reva, Consultor de Ameaças Transnacionais e Crime Internacional do ISS (Instituto para Estudos de Segurança) aconselha os decisores políticos do continente a concentrarem os esforços em três factores de risco: haver esforços globais coordenados para impedir que o ISIS reagrupe e ganhe uma posição mais forte no norte de África. Fortalecer a cooperação regional na África Ocidental e Oriental para impedir que o grupo alargue a influência. E, principalmente, os decisores políticos devem estar vigilantes sobre a dinâmica associada ao extremismo violento e ao terrorismo: corrupção, Estado de direito fraco, abusos dos direitos humanos, discriminação e acções repressivas contra comunidades étnicas e religiosas específicas contribuem para as vulnerabilidades que podem ser exploradas pelo ISIS.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.