"Para lidar com os desafios motivados por um conjunto de crises em cascata, os instrumentos de dívida estatal que ligam os pagamentos do serviço de dívida à capacidade dos países para pagar deviam ser considerados nos futuros contratos de dívida", escreve Hanan Morsy, defendendo "as cláusulas de contingência climática deviam ser embutidas nos futuros contratos de dívida para adiar os pagamentos em caso de grandes choques climáticos ou desastres naturais".
A suspensão dos pagamentos em caso de desastres naturais é uma das três medidas avançadas pela responsável para lidar com a crise da dívida que afeta os países mais desfavorecidos, em particular os africanos, e tem motivado um conjunto de iniciativas a nível mundial, a última das quais aconteceu em Paris, no final de junho, quando o Presidente de França, Emmanuel Macron, convocou os parceiros para delinear um novo pacto de financiamento global.
"A crise da dívida soberana está a atingir África de forma particularmente dura e pode levar a uma década perdida de desenvolvimento; apesar de o G20 ter tentado aliviar o fardo, o seu Enquadramento Comum provou ser ineficaz e precisa de ser reformulado, e as instituições internacionais têm de arranjar espaço para os países africanos nas reuniões de decisão de políticas", defendeu.
Além da suspensão do serviço da dívida em caso de choques climáticos, a UNECA defende também uma reformulação do Enquadramento Comum do G20, a iniciativa criada para aliviar os pagamentos de dívida, mas que não surtiu efeito devido à falta de participação dos credores privados e às consequências na descida do rating dos países aderentes, o que por sua vez impossibilitava, na prática, o acesso ao financiamento internacional.
"Os países de médio rendimento, que também estão a debater-se com uma dívida insustentável, deviam ser elegíveis", escreve Hanan Morsy numa declaração enviada à Lusa, na qual diz que o serviço da dívida devia ser suspenso ao abrigo de um calendário transparente e credível, e que o Fundo Monetário Internacional (FMI) devia financiar a despesa essencial desses países enquanto durassem as negociações com os credores.
A UNECA advoga ainda um fortalecimento do enquadramento legal das necessidades de dívida pública, desafiando o estado de Nova Iorque, que regula legalmente a maior parte das emissões de dívida, a liderar este processo, que "impediria que 'fundos-abutre' de investimento ataquem os devedores em dificuldades".
Por último, esta organização das Nações Unidas propõe ainda que as instituições internacionais criem espaço para os países africanos e outras economias em desenvolvimento estarem presentes nas principais mesas de negociações.
"Se a União Africana tivesse um assento permanente no G20, por exemplo, o continente poderia participar completamente nas discussões sobre as iniciativas do G20, com o Enquadramento Comum", afirma.
O crescimento do rácio da dívida pública face ao PIB dos países africanos, assim como do rácio da receita face aos juros da dívida, tem estado a crescer, principalmente desde a pandemia de covid-19, colocando vários países africanos em Incumprimento Financeiro e com grandes dificuldades para cumprir as obrigações financeiras.
Os países "aproveitaram as taxas de juro historicamente baixas entre 2010 e 2020 para se endividarem fortemente nos mercados internacionais e na China, o que fez com que os volumes de dívida mais do que duplicassem nesse período", lembra Hanan Morsy, notando que o problema é que a dívida "tornou-se muito mais onerosa", a que se juntaram os choques exógenos da pandemia, a guerra da Rússia na Ucrânia, o agravamento das condições climáticas e a redução da ajuda internacional e do financiamento concessional, a que se junta a subida dos juros.
"Em 2024, os países africanos vão gastar cerca de 74 mil milhões de dólares [68 mil milhões de euros] no serviço da dívida, acima dos 17 mil milhões de dólares [15,6 mil milhões de euros] gastos em 2010", salienta, exemplificando que o Gana e a Zâmbia já estão em 'default', e o Chade e a Etiópia estão em negociações de reestruturação.
Entre os exemplos de medidas tomadas pelos países para não entrarem em 'default', Hanan Morsy aponta que "o Quénia já foi obrigado a suspender os pagamentos aos funcionários públicos para pagar a dívida, e outros países reduziram o financiamento para a educação e os cuidados de saúde; o serviço da dívida vale 10,6% do PIB de África, comparado com os 6% gastos em saúde".
As consequências, conclui, são claras: "Não havendo melhores mecanismos para os países em sobre-endividamento, mais governos vão debater-se para cumprirem as suas obrigações e vão parar de investir no futuro; os estragos daí decorrentes vão ter implicações significativas para a luta contra as alterações climáticas, e lidar com o fardo da dívida hoje vai custar muito menos do que ligar com insustentáveis fardos ambientais