Sendo certo que a Constituição de 1980 era omissa sobre esse direito fundamental, pode-se seguramente afirmar que ele passou a ter dignidade constitucional após a implantação em Cabo Verde de um Estado de Direito Democrático, que ocorreu em 1991 com a realização de eleições livres e democráticas no país.
Contudo, o nº 2 do artigo acima referido prescreve que o exercício do direito à greve será regulado por lei que: “define as condições de prestação durante a greve, dos serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações e ainda dos serviços mínimos indispensáveis para satisfazer as necessidades sociais impreteríveis”.
Sendo a “greve”, inquestionavelmente, um direito fundamental, todavia, é a própria Constituição da República que estabelece a necessidade da sua regulamentação em lei ordinária face à complexidade desse direito e à necessidade de se harmonizar o direito à grave com o sistema jurídico vigente, designadamente com outros direitos fundamentais também de valor constitucional.
Com a implantação do Estado de Direito Democrático no país, não se aprovou nenhum diploma legal de hierarquia inferior à Constituição para regulamentar essa matéria.
Creio que tal desidrato apresentava-se desnecessário pois, o direito à greve já tinha sido devidamente regulado em Cabo Verde através do Decreto-Lei nº 76/90 de 10 de Setembro, ou seja antes da implantação da Constituição de 1992.
A primeira questão jurídica que aqui se suscita: é a de saber se a lei da greve choca com a Constituição vigente, implantada com o Estado de Direito Democrático.
Cremos que, da leitura dessa “lei” facilmente se depreende que esse diploma legal não choca com a nossa lei magna.
Destarte, a lei da greve acima referida, para todos os efeitos ainda vigora no nosso Estado, porque nunca foi revogada ou declarada inconstitucional. Se a sua conformidade com a Constituição for posta em causa, caberá apenas ao Tribunal Constitucional pronunciar ou melhor decidir sobre a sua constitucionalidade ou não, mediante solicitação a esse Tribunal por pate dos órgãos competentes através da fiscalização abstracta da constitucionalidade da lei (art.º 280 da Constituição) ou da fiscalização concreta da sua constitucionalidade, nos termos do artigo 281º quando se recorre de uma decisão judicial para esse Tribunal.
O Decreto-Lei nº 76/90 de 10 de Setembro, ou seja, a denominada lei da greve, no seu artigo 15º, prescreve que, e passamos a citar: “ É proibida a greve: Às forças militares e militarizadas; b) Às forças policiais e aos guardas prisionais”. Assim sendo, para todos os efeitos legais, a greve da Polícia Nacional foi manifestamente ilegal, foi contra a Ordem Jurídica Caboverdiana. Ficamos com a sensação que o problema da não-aceitação da constitucionalidade da lei da greve, em vigor no país, reside no facto de ela ter sido aprovada antes da Constituição de 1992, ainda no regime de partido único, facto que não constitui fundamentação jurídica para a sua constitucionalidade ser posta em causa.
Sendo a greve realizada pela Polícia Nacional ilegal por desconformidade com a lei da greve, os grevistas cometeram um acto ilícito, e consequentemente punível.
É preocupante que juristas alegadamente credenciados, analistas, sindicalistas e fazedores de opinião tentem branquear e justificar, com argumentos fúteis e falaciosos um acto ferido de legalidade num Estado de Direito Democrático, onde vigora o princípio da legalidade e do primado da lei. Legítimo e diferente é argumentar que a lei em vigor é inconstitucional, todavia, repito, o único órgão competente para decidir da constitucionalidade ou não de uma lei, é o Tribunal Constitucional.
Os polícias têm o direito de reivindicar, de reclamar tudo o que acharem justo, mas não têm o direito de praticar actos ilícitos.
A Polícia Nacional não está acima da “Lei”, pelo contrário, são os primeiros defensores da legalidade. Segundo o artigo 244º, nº1 da Constituição da República de Cabo Verde: A polícia tem por função defender a legalidade democrática, prevenir a criminalidade e garantir a segurança interna e a tranquilidade pública e o exercício dos direitos dos cidadãos.
Com o devido respeito pela opinião contrária, o Sr. Ministro Paulo Rocha devia usar o argumento da ilegalidade para persuadir os polícias a não fazê-la, e devia ser peremptório e contundente, arguindo que num Estado de Direito um Governo nomeado através de um processo democrático não pode, a que pretexto for, tolerar um acto ilegal. Tendo o Sr. Ministro da Administração Interna dito publicamente, e bem, que o direito à greve é consagrado na nossa Constituição, ficou por dizer que, segundo “a lei da greve” os polícias não podem fazer greve. Não seria uma declaração inédita, pois o Ex-Primeiro Ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, já o tinha dito anteriormente. Aliás, disse-o em contexto menos gravoso pois estava-se perante uma tentativa de greve na Polícia Judiciária, mas essa declaração foi remédio santo. Esse ex-governante fundamentou o seu ponto de vista duma forma atabalhoada e até ameaçadora, com o argumento de que uma greve na polícia judiciária chocaria com outros direitos fundamentais das pessoas, o que não é bem assim, pois sendo a PJ uma polícia de investigação criminal, e uma greve de curta duração não beliscaria os direitos fundamentais e nem teria repercussões na vida das pessoas e das instituições similares ao de uma greve na Polícia Nacional.
No caso em apreço o essencial é que o argumento da ilegalidade da greve poderia evitar que ela acontecesse. Todavia, o Sindicato e os seus dirigentes deviam saber que a “lei da greve” em vigor no país proíbe a realização da greve pelos polícias; que esse dispositivo legal não choca com a Constituição da República, e se, eventualmente, ferir a Constituição, ou seja, de constitucionalidade duvidosa, enquanto quem de direito não a declarar inconstitucional, ela vigora na ordem jurídica caboverdiana e é para ser cumprida por todos os seus destinatários.
Se esse acto foi praticado consciente e premeditadamente com essa ilegalidade, os polícias, então, quiseram desafiar a autoridade do Estado de Direito Democrático, perverter as Leis da República e praticar condutas manifestamente de insurreição contra a Soberania Nacional, situação que não nos parece verossímil. Todavia, o desconhecimento da lei não beneficia o seu infractor.
O país assistiu a um rosário de argumentos estéreis e até fúteis, dos dois lados da barricada em debate, antes e depois da greve, para se justificar a sua realização e legalidade. Duma forma irresponsável os polícias jogaram com um assunto muito sério e delicado, que é a segurança dos cidadãos, da vida e integridade física das pessoas e dos seus bens e da autoridade do Estado de Direito. Corria-se o risco de a segurança de todos ser ameaçada, e perverter a Ordem e o Direito vigentes na nossa sociedade, no nosso sistema político. “Brincou-se” com aquilo que é mais sagrado numa colectividade organizada que é a PAZ SOCIAL e a SEGURANÇA. Valores que são o apanágio identitário do nosso povo enquanto comunidade alicerçada na Nação Caboverdiana e consolidada no Estado de Direito Democrático.
Bastante assertivo esteve o Sr. Primeiro-Ministro ao afirmar que a acção praticada pelos polícias foi “um atentado ao Estado de Direito Democrático …”, embora o Governo que ele chefia não o estivesse antes da greve. Decerto o exercício do direito à greve, caso fosse permitido aos polícias e às forças militares e militarizadas, iria pôr em causa, durante a sua realização, a garantia de vários direitos constitucionais consagrados na Lei Mãe do nosso Estado. Ora vejamos:
- Soberania – artigo 1º;
- Estado de Direito Democrático – artigo 2º;
- Legalidade Democrática - artigo 3º;
- Inviolabilidade dos Direitos Liberdades e Garantias – artigo 15º;
- Direito à segurança pessoal – artigo 30º;
- Competência do Tribunal Constitucional – artigo 215º;
- Vinculação do pessoal da Administração Pública aos princípios que norteiam a função pública – artigo 241º;
- Responsabilização dos agentes públicos – artigo 243º;
- Funções da Polícia – artigo 244º.
Qualquer constitucionalista que se preze pode ajuizar dessas inconstitucionalidades. A greve realizada esbarrou com a Constituição e com a Lei, e por mais que se tente branqueá-la, a Democracia não se coaduna com rebelião, o Estado de Direto não permite violação à lei e a liberdade não se confunde com libertinagem.
Quem interpretar devidamente o verbo utilizado e as acções promovidas pelos grevistas e seus defensores pode concluir que, essa greve foi uma greve política e politizada. Se essa interpretação ora formulada estiver certa a greve dos polícias foi duplamente ilegal.
Juridicamente a questão agora a ser formulada é esta: Quid júris?
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.