Retratos do Quotidiano: Cultura de cidadania

PorCésar Monteiro,12 fev 2018 10:37

​A Constituição da República de Cabo Verde, que dotou o país de um quadro normativo moderno estribado em “princípios estruturantes de uma democracia pluralista”, consagra, no seu artigo 55º, um conjunto de direitos, liberdades e garantias de participação política e de exercício de cidadania, permitindo, nomea-damente, a todos os cidadãos “participar na vida política directamente e através de representantes livremente eleitos”. Todavia, na prática, a consubstanciação de um vasto leque de direitos e deveres, abrangendo os mais diversos sectores da vida cabo-verdiana, passa, necessariamente, pela existência de uma cultura política mais ou menos sólida, constituída pelo “conjunto de normas, padrões, símbolos, valores e crenças que acompanham cada indivíduo, mas também cada Estado ou sistema político ” (Paula Espírito Santo).

Na configuração da cultura política cabo-verdiana, impõe-se, necessariamente, o papel da socialização política, enquanto mecanismo de aprendizagem, propiciador e facilitador dos contactos dos cidadãos com o sistema político, pela via da inculcação de representações, crenças e normas. Basicamente, a cultura política nacional, reforçada e diversificada com a instauração formal da democracia pluralista, em 1991, cria premissas para o exercício do direito fundamental de cidadania, que não significa, tão-somente, um vínculo jurídico-político do indivíduo com o Estado, mas abrange, outrossim, uma vasta panóplia de direitos civis, políticos e sociais e obrigações ligados à qualidade de cidadão.

A despeito dos ganhos visíveis do sistema político cabo-verdiano, do processo pacífico de transição e, ainda, da sua estabilidade democrática, considera-se, no entanto, frágil a cultura de participação política no país, confinada, na prática, a períodos eleitorais, tendo em mira, em última análise, a caça ao voto, instrumento legitimador do poder. Independentemente da sua vertente institucional e da complexidade do processo, a materialização do projecto de consolidação democrática, no país, tem sido, no plano meramente cultural, fortemente condicionada por um conjunto de representações, atitudes, comportamentos e práticas políticas perversas, consubstanciados através daquilo que Leão de Pina apelidou, correctamente, de “cultura de pendor particularista”.

Por outro lado, no exercício estrito do poder político, a Lei Constitucional, consagra, igualmente, o direito de todos os cidadãos constituírem partidos políticos, entidades fundamentais da ordem democrática instituída no país, que concorrem para a “formação da vontade popular e para a organização do poder político”, num regime representativo ancorado no eleitorado e no sufrágio universal, directo, secrecto e periódico. Todavia, diante de um também défice acentuado de cultura cívica, tem-se registado, ao longo dos tempos, a partidarização excessiva da vida social cabo-verdiana, assistindo-se à asfixia da sociedade civil pelo sistema dos partidos políticos, que, afinal, são os principais distribuidores do poder no interior das sociedades. Aliás, particularmente em contextos eleitorais em que as interferências na vida dos cidadãos se revelam ainda maiores, na ausência de uma cultura democrática sólida e de uma consciência cívica forte, assiste-se, igualmente, à instrumentalização consciente do cidadão, por via, às vezes, de eventuais ligações partidárias, a troco de promessas de campanha ao eleitorado que, depois, não se efectivam. Contudo, volvido o período de efervescência e de promessas eleitorais, aprofundam-se as relações assimétricas entre as formações políticas do arco do poder, enquanto principais agentes de socialização política, e os cidadãos, numa espécie de cumplicidade entre as primeiras e uma elite que gravita em torno delas, influenciando decisões mais ou menos relevantes e de interesse público.

A entourage próxima da máquina partidária e do poder, que se reproduz através dos ciclos eleitorais,funcionou, sempre, no país, como uma espécie de grupo de pressão, mas também de “ouvidos” do sistema, numa partilha de favores e de benesses e numa lógica de interesses particularistas e incongruentes com a natureza e a estabilidade do próprio regime político, mediante recompensas ou gratificações, que em nada abonam a favor do fortalecimento e da consolidação democrática. A ligação e a fidelização dos militantes e simpatizantes aos partidos políticos do arco do poder processam-se em razão das gratificações ou retribuições que se situam, igualmente, no plano psicoafectivo, através, nomeadamente, das relações de convivialidade, dos prazeres da intriga, da calúnia, ou, ainda, da proximidade dos “grandes”, parafraseando Philippe Braud.

No exercício do poder político pelos partidos e na ânsia de se controlar a sociedade, numa democracia que, de resto, não se encontra definitivamente consolidada, pelo menos do ponto de vista substancial, a despeito da estabilidade do regime, desencadeiam-se, também, mecanismos perversos de dependência, mormente ao nível da Administração Pública, que se traduzem na redução da confiança dos cidadãos nas instituições, no reforço da apatia política e contra o interesse público. Os próprios movimentos cívicos apartidários que, pontualmente, vão aparecendo aqui e acolá, independentemente das suas motivações e da sua matriz ideológica, não têm resistido às investidas partidárias e, a contracorrente da Constituição da República, espelham, claramente, a fragilidade da cultura cívica cabo-verdiana, que mais não é do que a assumpção da também frágil cultura política pelos cidadãos.

Diante de um fenómeno político tão transversal e preocupante, pela sua natureza e dimensão, é preciso, à luz dos preceitos constitucionais e agora mais do que nunca, que os poderes e as instituições instituídos neste país defendam os direitos dos cidadãos, independentemente da sua cor da pele, da sua procedência geográfica, do seu credo religioso e das suas conceções filosóficas e ideológicas. Em todo o caso, promovendo e defendendo valores sagrados de justiça e igualdade, competências nacionais e contra a mediocridade, seja ela qual for, é preciso, igualmente, que, nenhum cidadão, residente ou não no país, em nome de interesses particularistas, seja beneficiado ou prejudicado, em virtude de ser militante, simpatizante, próximo deste ou daquele partido político, ou mesmo completamente distante do sistema de partidos políticos. Assim o exigem a democracia pluralista e o desenvolvimento!


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 845 de 07 de Fevereiro de 2018.

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Cultura

Autoria:César Monteiro,12 fev 2018 10:37

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  12 fev 2018 10:37

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