Cultura, negócios e economia – a receita certa na hora de um virar de página

PorJosé Almada Dias,7 mar 2018 6:25

José Almada Dias
José Almada Dias

“Recentemente, uma revista inglesa especializada em turismo classificava o Carnaval do Mindelo como um dos melhores do mundo, aconselhando mesmo as pessoas a esquecerem o carnaval do Rio de Janeiro e irem descobrir o da cidade do Mindelo” (reportagem da RFI em 2016).

A revista The Economist, uma das mais conceituadas do mundo, produziu um vídeo contendo uma reportagem sobre a história do Carnaval no mundo e a sua importância económica. Segundo essa reportagem, aquela que é considerada a maior festa do planeta acontece hoje em mais de 50 países, e movimenta biliões de dólares e milhões de turistas, dando-se como exemplo a Meca do Carnaval, a cidade brasileira do Rio de Janeiro, que, em 2016, recebeu 1 milhão de turistas que geraram um volume de negócios de 900 milhões de dólares.

A cultura só se faz com muito dinheiro e ela própria faz circular milhões. Basta ver o que custa hoje um filme e as respectivas receitas de bilheteira. Ou o dinheiro que gira à volta da música mundial.

Pois é, minha gente, gostando-se ou não, a cultura é cada vez mais um negócio com um sério impacto nas economias regionais e global. Quem ainda não percebeu isso vive num outro planeta que não este.

Em 2014, escrevi uma crónica intitulada “O Carnaval crioulo cabo-verdiano dos Equívocos, da Diversidade, da Indústria da Cultura, da Política, da Economia, dos Emigrantes, etc. (I)” onde fiz a afirmação seguinte: “(...) à medida que se desenvolvem (...) as sociedades modernas viram-se para o lazer, de onde extraem diversão e economias de elevado valor acrescentado que estão hoje na base do turismo, a maior indústria mundial”.

E acrescentei, nessa mesma crónica, extractos de livros de estudiosos do Carnaval que vale a pena recordar: “Em França, o próprio rei Luís XIV comandava os bailes de Carnaval nos salões reais (...) os donos do poder parisiense rapidamente perceberam os prazeres e as lucrativas negociações que poderiam resultar das festas carnavalescas, tendo a burguesia parisiense da época passado a patrocinar os grandes bailes de fantasia, onde surgiu a noção de mistura entre as classes sociais (...) foi esse o modelo de Carnaval que mais tarde seria adoptado no Brasil, após a independência em 1822. O Carnaval é negócio há centenas de anos!”

Pela primeira vez, temos um governo que entendeu a problemática. Ainda bem, nunca é tarde. Foi na manhã de terça-feira do Carnaval 2018 que foi assinado o acordo entre o Governo de Cabo Verde e o Afreximbank, um banco pan-africano que disponibiliza uma linha de crédito de 500 milhões de euros para financiar o desenvolvimento do sector privado nacional. Foi assinado na cidade do Mindelo, cidade-berço do Carnaval moderno verdiano, ainda na ressaca do fabuloso desfile do grupo Samba Tropical na noite anterior, e horas antes dos não menos fabulosos desfiles dos 4 grupos que competiram nesta edição: Monte Sossego, Cruzeiros do Norte, Vindos do Oriente e Flores do Mindelo.

Fica então para a história de Cabo Verde que o acordo que disponibiliza o maior montante de sempre para os negócios privados nestas ilhas foi assinado no meio da maior e mais criativa manifestação cultural cabo-verdiana, aquela que, como eu já tinha afirmado anteriormente, “possui maior variedade cultural: tem enredo, música com ritmos contagiantes e letras com conteúdo, tem coreografia, teatro, artes plásticas, um colorido inigualável, ou seja, é arte pura – por isso mesmo cria uma verdadeira economia baseada nas mais variadas indústrias criativas”.

Um acordo assinado pelo vice-primeiro ministro, Olavo Correia, e pelo presidente do Afreximbank, na presença do primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, e vários outros membros do Governo, e dos presidentes da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal de São Vicente, entre muitas outras entidades.

Se esta crónica não podia deixar de elogiar a atitude deste Governo de Cabo Verde em relação ao Carnaval mindelense, sobretudo pela diferença em relação aos que o antecederam, também não podemos deixar de elogiar ainda mais largamente os responsáveis por aquele que é hoje justamente considerado um dos melhores carnavais do mundo.

Falo de um executivo camarário comprometido com a promoção nacional e internacional desta festa, trabalhando de forma próxima com os grupos numa conjugação de esforços que não me lembro de ver anteriormente. De um presidente e da sua equipa de vereadores que, neste particular do Carnaval, têm feito um excelente trabalho. Dos muitos funcionários da Câmara Municipal de São Vicente que há décadas trabalham na preparação deste grande evento, incluindo fins-de-semana longe das suas famílias.

Mas realço ainda mais os líderes dos hoje chamados “grupos oficiais”, que, chefiando as suas equipas, conseguiram transformar um produto que tinha potencial numa certeza que é hoje admirada dentro e fora de portas. São pessoas que trabalham durante 365 dias por ano sem nenhuma contrapartida, prejudicando inclusive as suas próprias carreiras profissionais para pôr de pé o maior espectáculo cultural destas ilhas.

São pessoas como Lili Fortes, Fatinha do Rosário, Ana Soares, António “Patcha” Duarte, David “Daya” Leite, entre muitos outros.

A criação da Liga dos Grupos de Carnaval de São Vicente, a LIGOC-SV, constituiu um passo de excelência que já começou a dar os seus frutos. Os grupos trabalharam de forma coordenada e profissional e até fizeram uma deslocação conjunta ao Brasil, acompanhados do presidente da Câmara Municipal de São Vicente. Quem disse que os cabo-verdianos não conseguem trabalhar em harmonia?

O Carnaval do Mindelo é hoje um dos melhores exemplos de empreendedorismo que há neste país. Trabalho profissional que põe na rua, de forma pontual e com uma qualidade invejável, um evento de nível mundial. Idem aspas para o Carnaval da Ribeira Brava, que todos os anos, num contexto difícil de uma ilha isolada, nos consegue surpreender pela sua qualidade. Outros exemplos vão surgindo no país e aos poucos vão percorrendo o seu caminho.

Neste ano, a competição carnavalesca mindelense teve um regulamento complexo e bem elaborado, da iniciativa da LIGOC-SV. Tendo feito parte do júri, pude constatar com surpresa o nível do trabalho que se está a fazer. Muita coisa há ainda a melhorar, mas o percurso já feito é de se tirar o chapéu. O caminho da transparência na competição também começou a ser trilhado, com os componentes do júri a serem pela primeira vez revelados publicamente.

Do lado da inovação, continua a dar frutos o bom trabalho iniciado a nível das batucadas pelo impagável Mick Lima (este ano, justamente homenageado pelo grupo Samba Tropical), fora a introdução da componente teatral pelo João Branco e companheiros, e também o trabalho coreográfico a nível dos porta-bandeiras introduzido pelo João Carlos, que, para além de sambar no asfalto, ainda escreveu este ano a sinopse de 3 dos 5 enredos e foi co-autor das respectivas músicas, incluindo a do Samba Tropical, que homenageou a nossa inesquecível Cesária Évora. Grupo Samba Tropical, que este ano festejou 30 anos de existência e que ficará na história desta festa pela revolução qualitativa que trouxe ao Carnaval mindelense.

Não tenho dúvidas de que, depois da nossa embaixadora Cize, o Carnaval do Mindelo e da Ribeira Brava estarão entre os maiores cartazes culturais e turísticos deste país.

O primeiro-ministro de Cabo Verde escreveu na sua página do Facebook que o Carnaval mindelense atingiu um nível de qualidade tal que precisa de ser profissionalizado. Eu assino por baixo.

Há já algum tempo que o ministro do Turismo, José Gonçalves, vem afirmando que o Carnaval deve ser rentabilizado durante todo o ano – nesse âmbito, o Carnaval de Verão já é uma certeza.

Oportunidades de negócio crescem e multiplicam-se todos os anos à volta desta grande manifestação. Percebe-se que vários autarcas queiram ter este fenómeno nas suas cidades. Falando em autarquias, é de elogiar a iniciativa de colocação de bancadas nas cidades do Mindelo e da Praia, uma inovação deste Carnaval 2018.

Neste ano de homenagem a Cesária Évora, vários foram os cantores cabo-verdianos que vieram da diáspora e de outras ilhas para cantar e desfilar nos vários grupos, numa bela iniciativa, valorizando ainda mais as composições de Constantino, Jotacê, Anísio e Vady Dias. Vlú Ferreira e o seu trio eléctrico Mindel Fantasy também não deixaram de marcar presença.

Um factor que começa a ser notado é o desnível entre os grupos – um maior equilíbrio favoreceria a qualidade no seu todo. Aqui, neste particular, entra a parte financeira. O Carnaval mindelense já necessita de elevados montantes para financiar a qualidade que cresce todos os anos.

Assim, voltamos a repetir o que dissemos já: o que o Carnaval precisa para ser rentabilizado é de mercado, de consumidores que paguem bom dinheiro para assistir à Festa do Rei Momo, e isso só será possível com uma oferta hoteleira muito maior e melhor do que a que temos. Caso contrário, não será sustentável.

Mesmo a calhar, no mesmo acto de assinatura do acordo mencionado antes, foi também concluído um acordo de financiamento entre o Afreximbank e os promotores do futuro hotel Golden Tulip Mindelo, que se irá localizar na praia da Lajinha, na cidade do Mindelo. São mais 230 quartos que se acrescentam à oferta hoteleira da ilha, mais um hotel de nacionais e que não será all inclusive.

Mais um exemplo de empreendedorismo mindelense e nacional, que deverá orgulhar todos os cabo-verdianos. O projecto de arquitectura e o estudo de viabilidade foram feitos totalmente no Mindelo e foram aprovados à primeira por uma das maiores cadeias hoteleiras do mundo e também pelo Afreximbank. Na linha do que escrevi na crónica anterior, voltamos a destacar que temos qualidade na nossa terra.

Foi um dia de Carnaval que ficará por muitas e boas razões na história da ilha de São Vicente e de Cabo Verde.

Uns dias depois, foi anunciado que o primeiro hotel do projecto SalamansaBay irá começar a ser construído ainda este ano. São mais 314 quartos, que juntamente com os 230 do Golden Tulip, colocarão definitivamente a ilha de São Vicente na rota do turismo mundial.

Na cidade da Praia, pude constatar o excelente trabalho conceptual que está por detrás do Hotel Jazmine, também de iniciativa nacional e a ser construído pela empresa cabo-verdiana SGL. São excelentes notícias!

Escrevi em Janeiro que 2018 seria o ano em que o mundo viria visitar Cabo Verde. Os empreendedores culturais, as autoridades e os empresários cabo-verdianos já estão a preparar-se para isso, e sendo assim temos razões para estar optimistas em relação ao futuro do sector e do país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.

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Autoria:José Almada Dias,7 mar 2018 6:25

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  7 mar 2018 6:25

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