Ar livre: Fake father

PorEurídice Monteiro,3 abr 2018 7:20

Há tempos partilharam comigo uma entrevista sugestiva de um japonês que, com criatividade e desenvoltura, é capaz de desempenhar, por encomenda, o papel de pai ou marido na vida real de uma qualquer família monoparental. Por instante, deixemos os nossos julgamentos morais de lado, centremos então na oportunidade deste negócio lá numa sociedade atomizada como a nipónica. Diz Ishii Yuichi, pouco importa que seja um nome verdadeiro ou inventado, que a aparência é o que vale.

E deste modo, encontrou uma forma para dar volta a uma situação que vem ganhando terreno no Japão, criando uma agência, Family Romance, onde os clientes podem contratar profissionais para desempenhar o papel de outras pessoas nas suas vidas reais. Tais profissionais, preparados para se adaptarem às circunstâncias, podem encarnar a figura de melhor amigo, marido, pai ou um amigo destroçado num funeral.

Já conhecíamos as carpideiras, pois há relatos que, desde tempos remotos e em diferentes sociedades, algumas mulheres bem vocacionadas são contratadas para chorar para um defunto alheio. Agora, dar o passo seguinte até ao ponto de pensar, por exemplo, num pai de aluguer, isso já exige um pouco mais de criatividade. De maneira que, descobrindo esta fonte lucrativa dos modos modernos, Ishii Yuichi deu asas à imaginação e, assim, com a empresa ajudam as pessoas a preencher ausências ou falhas insuportáveis. De entre as encomendas, conta o sucesso que foi quando uma mãe solteira o recrutou para fazer de pai da sua filha de 12 anos, que era maltratada por outras crianças na escola por não ter pai. O pior risco assumido tanto pela mãe como pelo profissional é um dia a filha descobrir a verdade. Até agora, vão mantendo a aparência.

Isto faz pensar nas dinâmicas familiares já que estamos no mês do pai e da mulher, do teatro e da poesia. Por exemplo, em Cabo Verde, é comum a narrativa sobre a mãe abandonada pelo pai dos filhos. Tornou-se trivial pensar que o que eles querem é sexo, e não filhos. Contudo, o destino e o acaso fazem brotar inúmeros casos, por razões que a razão desconhece ou até reconhece, de procriação a cargo da mulher dentro e fora do território arquipelágico, atingindo cada vez mais a sua vasta diáspora. Certamente mais por falta de outra alternativa do que de uma escolha consciente. Ainda hoje, continuamos a debater sobre este fenómeno que não é novo e cujas raízes mais sólidas vêm dos quatro séculos de escravatura e não foram desmanteladas por completo. Quem trouxe para cá esta prática de fazer filhosemnomedopai ou relegadas à mãe?

Sem dúvida, a violência de uma história de colonização e escravatura teve impactos na vida de homens e mulheres, principalmente nas camadas mais baixas da sociedade. Alguns estudos têm vindo a pautar esta questão tanto do ponto de vista histórico como em relação ao seu impacto na paisagem social contemporânea. O contacto racial, cultural e sexual entre senhores e escravas explica a interligação complexa entre a dominação racial e a dominação sexual das mulheres negras, submetidas largamente ao concubinato. Isto permite vislumbrar como a permissividade e promiscuidade sexual da instituição escravocrata e o estilo de vida senhorial da época tiveram impacto no tecido social cabo-verdiano, com fortes consequências ainda nos dias de hoje.

António Carreira já havia ressaltado que a própria aventura colonial se teria configurado em termos masculinos, o que configuraria uma estrutura familiar normativa de matriz patrilinear no arquipélago: «A mulher europeia não emigrava para África; e quando foi com o seu homem fê-lo raramente. Por outro lado, a presença da mulher branca nunca constituiu embaraço para que o homem da mesma etnia fixado nas ilhas se ligasse a uma ou mais mulheres africanas. As uniões de homem branco e mulher preta foram, pois, correntes e socialmente aceites de forma geral. Não se olhava à função ou cargo que ele desempenhava. Daí o surto de inúmeros descendentes bastardos de capitães-mores, de governadores, de altos funcionários régios, de ministros da Igreja, etc. [...] Nas ilhas esse tipo de ligações foi mais ou menos aceite pela comunidade sem grande constrangimento, embora em muitos casos as mulheres aspirassem à regularização das situações através do casamento, canónico ou civil. [...] E esse comportamento era, naturalmente, imitado pelos escravos e pelos libertos [...]. A mãe-solteira [...] ficou consagrada como realidade sociológica [...]. Pode dizerse que existe uma poligamia de facto, que não de direito.»

Daí que, o modelo institucional fixado seria a família nuclear ocidental, mas na prática havia e há várias derivações e configurações familiares nesta secular sociedade crioula. Por isso, ao contrário do modelo de comportamento socialmente imposto e do modelo de família nuclear ocidental, desde o sistema escravocrata existia uma larga complacência com as práticas transgressivas no tocante aos preceitos religiosos e morais. Este processo histórico teria então consequências imprevisíveis, traduzidas num pesado fardo para a sociedade em geral e para as mulheres em particular.

Por causa disso, e de modo contundente nas camadas mais baixas da sociedade, predominam as relações matrilineares, donde se destaca a relação entre a mãe e os seus filhos; ao passo que, nas classes mais altas, a tendência é para a predominância de relações patrilineares. Por isso, o tipo ideal é a família patriarcal e, ainda nos dias de hoje, continua preocupante a presença irrisória da figura do pai na maior parte das unidades familiares e no dia-a-dia da sua descendência. Exemplo disso é a campanha «ami é pai», que demonstra que a paternidade é ainda um ideal a ser alcançado na sociedade cabo-verdiana.

É a historicidade e a generalização da ausência do pai de casa e da vida dos filhos que concede pouca relevância neste pequeno contexto insular, pelo menos nas camadas populares, a agências como a do japonês Ishii Yuichi. Subindo um pouco na hierarquia social, dada aos cuidados acrescidos à aparência, seria mesmo possível esse negócio de pai de aluguer? Ou a pequenez das ilhas e a excessiva exposição social inviabilizariam empresas desta natureza?


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,3 abr 2018 7:20

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  3 abr 2018 7:20

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