Legalidade e Administração

PorOliver Araújo,4 abr 2018 7:20

​Com estas ideias que transmitimos pretendemos analisar em que medida o princípio da legalidade encontra correspondência no cotidiano das organizações, com especial atenção para as entidades públicas administrativas (excluindo os órgãos do poder judicial, tribunais, etc). Concorrem alguns motivos para a não aplicação de Leis. Analisaremos alguns casos e veremos se os desvios em relação à legalidade são justificados.

Não é nosso propósito abordar questões pontuais, mas sim problemáticas com caráter estrutural, que repetem-se com frequência, que estão em maior ou menor grau enraizadas. Embora a questão tenha uma componente jurídica, ela acaba por ser, sobretudo, social e organizacional.

Um dos princípios elementares de qualquer Estado de Direito Democrático, conforme disposto no art.º 2º da nossa Constituição, é o princípio da legalidade. Não obstante, colocam-se importantes desafios ao nível da sua materialização. Ele pode ser caracterizado numa tripla vertente: 1)ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; 2)a lei vincula todas as autoridades encarregadas de aplicar o Direito - sejam administrativas, sejam judiciais – e os próprios órgãos que a elaboraram e impuseram; 3)contra os atos de autoridade que contrariamente ao disposto na Lei ou sem autorização legal, obrigarem os cidadãos a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, deve haver recurso que proteja os direitos dos lesados.

A legalidade tem um vasto âmbito, além das normas jurídicas que regulam a atividade principal, há outras que disciplinam outro tipo de atuações, atividade administrativa, normas procedimentais, financeiras, patrimoniais, contratuais, laborais, de direito público, privado, são tantas que sem um tratamento jurídico minimamente cabal, a entidade em causa corre o risco de estar bastante longe do que as Leis estipulam, com prejuízo para ela e para os cidadãos.

Retomando a questão, as motivações que levam à não aplicação de Leis, comecemos pelo “desconhecimento de normas, ou do seu alcance”. Dada a multiplicidade de legislação existente, esta é uma hipótese sempre possível. Mas, ela é muito menor quando existem juristas que desenvolvem a sua atividade de forma integrada e contínua, pelo que uma das medidas a considerar é precisamente a colocação e integração de juristas/ departamentos jurídicos nos organismos administrativos, já que muitos se encontram desfalcados desta vertente. Quanto a nós, essa insuficiência tem constituído um erro, que limita a capacidade de atuação da pessoa coletiva, coloca entidades na dependência de outros serviços que dispõem desses recursos humanos, prejudicando o cumprimento das respetivas missões.

Segundo motivo: “adequada interpretação e aplicação de leis”. Estes são atos eminentemente jurídicos. A interpretação é matéria de direito, é feita segundo normas previstas para o efeito. O conceituado Professor Oliveira Ascensão escrevia que “o Direito surge-nos como uma realidade abstracta, que transcende os exemplos com que o queiramos captar. O Direito não está em Abel ter transferido uma coisa a Bento, não se esgota na descrição deste facto social: tem um prolongamento que vai para além dele. A passagem da pré-compreensão, para usar um termo muito em moda, para o conhecimento exacto, é já obra da ciência do Direito”, cfr. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e teoria geral, 10ª ed. A compreensão e avaliação de determinada situação jurídica implica ter presente e interpretar várias normas, conceitos e efeitos que permitem um enquadramento razoável e harmonioso dos interesses em presença, portanto, soluções justas.

Outra causa usualmente apontada para menor adequação às Leis são “as urgências”. Elas revelam uma outra realidade estrutural nossa: déficit de planificação e seguimento, por vezes fruto de insuficiências de visão estratégica e definição de objetivos. Estas questões estão relacionadas com a problemática da liderança que, cada vez mais vai ganhando relevância entre nós. Todos os resursos de determinada organização podem ser portadores de faculdades de liderança, não obstante os responsáveis superiores delas carecerem mais. Liderança distingue-se da gestão, segundo Peter Drucker e Warren Bennis “Gerir é fazer as coisas de maneira certa; liderar é fazer as coisas certas”. Conforme o conhecido autor Stephen R. Covey, “A gestão é uma visão de métodos: qual é a melhor forma de conseguir determinadas coisas? A liderança lida com objetivos: que coisas desejo alcançar?... A gestão é o grau de eficácia necessário para subir mais rápido a escala do êxito. A liderança determina se a escala está apoiada na parede correta”, in,Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes”, Stephan Covey, gravida ed. E conclui o especialista que “Gestão eficaz sem liderança eficaz é, numa definição clássica, arrumar as cadeiras no convés do Titanic. Nenhum êxito de gestão consegue ultrapassar o fracasso da liderança. Contudo, liderar é difícil, porque caímos frequentemente na armadilha do paradigma da gestão”.

As nossas organizações, de um modo geral, carecem de liderança. Ainda confundimos o conceito de liderança, relacionado com fazer as coisas certas e mobilizar para esses efeitos, com outros conceitos, como chefia, gestão, ou poder de emitir ordens e aplicar sanções.

As urgências também ocorrem por força de outros fatores, como sejam a escassez de recursos humanos - casos em que esses recursos devem ser reforçados -, ou por força de questões inesperadas, casos em que são plenamente justificadas.

Caso de não aplicação da norma por força da sua “injustiça”. É lícito aos cidadãos desobedecerem o comando da lei em nome de uma justiça superior? Qual a resposta do Direito? Salientando a posição de Sto. Tomaz de Aquino e outros autores, as Leis são injustas quando visem interesses particulares em vez do bem comum, quando exorbitem do poder do legislador ou quando distribuam desigualmente os encargos entre os cidadãos. Nestes casos, a Lei não obriga em consciência e podem ser desacatadas, se a desobediência não importar escândalo ou perturbação.

O pensamento clássico exposto no anterior parágrafo continua sendo pertinente e de grande auxílio na aplicabilidade das normas. Sempre dentro da legalidade, os cânones de interpretação, designadamente o espírito das normas, a interpretação conforme à Constituição, os princípios jurídicos, deixam espaço para adequar a norma à realidade que visa regular e ao funcionamento dos princípios elementares de justiça. Como afirmara Marcello Caetano “O tecnicismo jurídico é útil e necessário, mas querer reduzir a ciência do Direito somente às suas secas fórmulas, seria empobrecê-la; e seria depreciar o papel do jurista na hora conturbada em que o Mundo mais carece de que ele proclame os ensinamentos de experiência pluri-secular”.

Concluímos que o aprofundamento do Estado de Direito passa por conseguir que as organizaçoes estejam em sintonia com a legalidade e isso dificilmente se alcança sem o reforço da vertente jurídica, que promove direitos dos cidadãos e também potencia a obtenção de resultados próprios do setor/atividade em causa, fruto da previsibilidade, confiança, segurança e justiça que pode representar; por outro lado, ela permite poupar recursos financeiros.

Antes de finalizar, salientar que a crise da Lei corresponde não só à crise da legalidade, mas à crise de justiça que uma certa legalidade se destina a realizar.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.

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Autoria:Oliver Araújo,4 abr 2018 7:20

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  4 abr 2018 7:20

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