Editorial: Importância maior da justiça em tempos de crise

PorHumberto Cardoso, Director,16 abr 2018 6:45

​Vivem-se tempos difíceis nas democracias. Por toda a parte notam-se sinais de crise nas instituições: o papel dos partidos é altamente criticado, substitui-se o exercício do pluralismo por lutas tribais sectárias, condimenta-se o discurso público com demagogia e populismo e o protagonismo político é cada vez dominado por personalidades que não escondem a sua apetência pelo poder autocrático.

 Em tal ambiente a degradação da vida pública é inevitável e quando atinge um certo limiar praticamente só o poder judicial a par com uma imprensa livre ficam em posição de a conter. No Brasil é o que se passa com as investigações de corrupção nos vários estratos da classe política e que já levou muita gente à prisão. Nos últimos dias culminou com o processo dramático da prisão do ex-presidente da república Lula da Silva.

O problema é que tanto nestes como noutros casos – por exemplo, na Itália com a operação Mãos Limpas de Antonio di Prieto e em menor escala em países como Portugal e Espanha, mas também em França, Israel e alguns outros países sul-americanos – pelo facto dos alvos serem políticos e a condenação ter consequências políticas diz-se que há sinais de judicialização da política e rapidamente surgem acusações de politização da justiça. Tais suspeições sobre as instituições do poder judicial podem ter o efeito de alastrar a crise para os últimos baluartes do sistema democrático, deixando abertas possibilidades que a história já demonstrou desembocarem directamente em ditaduras. No Brasil é um facto que o ambiente de desconfiança gerado pelas investigações de corrupção e agravado com o processo de destituição da presidente Dilma Rousseff já provocou uma crise de grandes proporções de tal forma que ninguém garante que a realização de eleições em Outubro será suficiente para legitimar o governo, restaurar a confiança nas instituições e abrir o caminho para as reformas urgentes no sistema político. Mas parece que, não obstante dúvidas quanto à forma de agir de alguns elementos da magistratura e do poder judicial, mantem-se um capital de confiança que a submissão de Lula à ordem de prisão veio confirmar. Evitou a convulsão geral que podia levar ao seu descrédito. Com o Estado de Direito confirmado nos seus elementos essenciais haverá menos dificuldade em iniciar o processo de relegitimação das instituições, diminuir a extrema polarização e reduzir o espaço de manobra para populistas e forças anti sistema remanescentes dos tempos da ditadura militar.

A importância de nas democracias tudo se fazer para manter credível o poder judicial é relembrada pelos actos sistemáticos dos pretendentes ao poder autocrático e ditatorial. Todos visam nos seus esforços desacreditá-lo. Ao fazê-lo, retiram às pessoas o instrumento fundamental para ver dirimidos os conflitos, para administrar a justiça e proteger direitos fundamentais em particular contra abusos e actos discricionários e arbitrários perpetrados pelo próprio estado. Não é por acaso que na América de Trump inaugurou-se uma pressão sem precedentes sobre juízes, procuradores e polícias. Ou que na Turquia de Erdogan muitos juízes foram presos e a independência dos tribunais está ameaçada na Polónia e na Hungria. De facto, se o império da lei não é assegurado, facilmente qualquer regime inicialmente democrático poderá entrar numa deriva em direcção a um regime iliberal que não respeita direitos fundamentais e que tudo fará para não ser arredado do poder. Manter intacto, competente e independente o poder judicial é essencial para afirmação da democracia e garantir a estabilidade. Esse objectivo porém não pode ser somente dos políticos, mas também da sociedade, dos médias e das diversas organizações da sociedade. Deverá vir ainda dos magistrados, da sua dedicação, esforço e conhecimento em manter o prestígio da profissão, a confiança das pessoas na justiça e a expectativa que não obstante todo o respeito pelas garantias de defesa, a justiça será feita em tempo útil.

O estado avançado da globalização que se vive actualmente coloca desafios extraordinários aos países e suas populações. Enfrentam nalguns casos perdas sem precedentes de postos de trabalho, têm dificuldades em manter a competitividade no mercado internacional e estão ansiosos em relação ao futuro porque não há certeza que a prazo vai-se conseguir manter a capacidade, conhecimento e know-how globais para continuar a aproveitar as oportunidades que vão surgindo no plano global. Insatisfação, incertezas e ressentimento podem constituir uma mistura complicada que as pessoas na sua ânsia de fazer ouvir a sua voz, de chamar quem governa à responsabilidade efectiva na gestão dos recursos públicos e de clamar pelo cumprimento das promessas feitas podem correr o risco de atirar para fora a proverbial “água com o bebê” e apoiar oportunistas e autocratas sacrificando no processo o construído durante décadas de democracia e desenvolvimento.

Cabo Verde, inserido como está na economia mundial e sob pressão de fazer o desenvolvimento acontecer, reproduz em boa medida as insatisfações com o sistema político que se notam noutras paragens. Também aqui as instituições democráticas estão sob tensão e num processo de descredibilização progressiva. Contrariamente ao que se vê em outras paragens, aqui o poder judicial não tem o crédito desejável para o qualificar como um baluarte do Estado de Direito que a tudo resistisse. As deficiências do sector da justiça, a percepção de impunidade acompanhada de sentimento de insegurança e a dificuldade da própria classe dos magistrados em se auto-regular numa perspectiva de mais eficácia, maior competência e mais celeridade colocam os juizes numa posição altamente vulnerável. Os ataques que têm recebido de diferentes quadrantes demonstram a sua fragilidade que também em certo sentido é fragilidade da própria democracia e do Estado de Direito. Ora, não é aceitável que tal fragilidade persista principalmente nestes tempos em que a democracia, como dizem certos autores, encontra-se em “recessão”.

Na revisão constitucional de 2010 foram transferidos competências e meios para as magistraturas e esperava-se mais comprometimento, mais competência e menos morosidade na administração da justiça. A situação que se constata hoje no sector da justiça, em certa medida sitiada com acusações, que não são resolvidas num sentido ou noutro, vindas de polícias, advogados e cidadãos comuns não é salutar para ninguém. Há que colocar a justiça e em particular as magistraturas numa base mais sólida, menos corporativista, mais comprometida com as necessidades da sociedade e mais ciente do seu papel histórico único de contribuir para a construção, consolidação e salvaguarda do Estado de Direito em Cabo Verde.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Humberto Cardoso, Director,16 abr 2018 6:45

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 abr 2018 6:45

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.