O facto, porém, é que já se devia ter previsto que esta legislatura não iria ser como as anteriores. Os tempos são outros: as pessoas mostram-se mais críticas, as instituições democráticas têm vindo a fragilizar-se sob a pressão do populismo e o país globalmente está escaldado e céptico após anos seguidos de política ilusionista. Devia ser óbvio que quem ganhasse as eleições teria curto tempo para agir, comunicar eficazmente e convencer os caboverdianos que iria cumprir com as promessas, sob pena de entrar num processo rápido de desgaste. A sucessão de manifestações, as ameaças e as greves destes dois anos constituíram avisos sérios que talvez o governo não tenha levado em devida conta. O resultado vê-se no inquérito.
Mas podia ter sido pior na ausência do crescimento de 3,8% e 3,9% do PIB verificado em 2016 e 2017 respectivamente muito superior à média de cerca de 1% dos cinco anos anteriores e com impacto na criação de emprego. Não é por acaso que os inquiridos do Afrobarómetro manifestaram confiança na melhoria das condições de vida mesmo quando a maioria diz que o país está na direcção errada. A contradição talvez traduza, por um lado, o reconhecimento que dinâmicas benéficas para a economia estão a ser geradas pela nova atitude do governo em relação à actividade privada quando, por outro lado, ainda persistem dúvidas sobre onde se quer levar o país. O governo ainda não convenceu quanto à despartidarização da administração pública, quanto à privatização de empresas em sectores-chave e quanto à estratégia de atracção de investimento externo e aumento do fluxo turístico. E verdade seja dita, dificilmente confiança é ganha, para se se ser suficientemente persuasivo em apontar um rumo diferente ao país, se problemas urgentes como insegurança, justiça, combate ao desemprego, habitação, saúde e educação não dão sinais inequívocos de estarem a ser equacionados e resolvidos.
Confiança nas instituições é fundamental nas democracias. Mostra-se por isso problemático verificar no inquérito do Afrobarómetro que comparativamente aos anos anteriores diminuiu a confiança do cabo-verdiano no funcionamento da democracia e em fazer-se ouvir pelos seus representantes nos órgãos de poder político. Num determinado sentido esta perda de confiança é um sinal dos tempos em que a crise grassa por todas as democracias novas ou consolidadas. Noutras paragens, razões como a globalização, as migrações internacionais, as sequelas da Grande Recessão de 2008 e da crise do euro e conflitos entre soberanistas, nativistas e cosmopolitas já levaram a saídas da União Europeia, eleições de populistas, rearranjos no sistema de partidos com desaparecimento de uns e emergências de outros, ameaças de secessão e ressurgimento do fascismo. Em Cabo Verde o populismo não alterou ainda o quadro partidário. Tem- se manifestado dentro e através dos partidos e no processo afectado as instituições, a relação entre órgãos de soberania e o modo de fazer política.
Ao alimentar o espírito anti-partido e anti-política o populismo reduziu o papel dos partidos na criação da vontade política e abriu caminho para percursos individuais que pela forma como ascendem explorando sentimentos, criando empatias e recorrendo a factores identitários dificilmente se ajustam às exigências de funcionamento das instituições da democracia representativa. Da deriva, o que se nota é que os novos políticos e a nova política tendem a comportar-se como celebridades sempre no centro de tudo e fazendo concentrar tudo na sua pessoa em detrimento da instituição, do recato que o seu funcionamento exige, da preocupação em seguir as normas procedimentais e do foco na procura do interesse geral num quadro plural e de exercício do contraditório.
A degenerescência e consequente perda de prestígio que, por exemplo, consome o parlamento verifica-se quando os seus trabalhos são dominados por esse tipo de protagonismo que se autojustifica com uma suposta ligação especial do deputado, sem mediação alguma, com o povo. Não deixa de ser de alguma forma trágico que o desejo legítimo das pessoas em se fazerem ouvir e em decidir quem as deve representar desencadeie um processo de escolha de representantes que contrariamente ao pretendido vai ajudar a alimentar uma fogueira de vaidades capaz de consumir políticos, a política e as instituições, deixando a todos em pior situação. No mesmo sentido, o espectáculo da degradação institucional que se vem notando nestes anos tende a reforçar ainda mais o desejo de se romper com as formas tradicionais de fazer política. Ao fazer isso tem o potencial de precipitar ainda o mais o descrédito dos parlamentos e partidos e permitir o reforço precisamente do tipo de política que inevitavelmente deixa todos mais abertos à ascensão triunfal de algum líder exigente na lealdade que quer de todos em troca de uma liderança com soluções simples e completa para tudo.
A publicação do inquérito do Afrobarómetro e dos dados neles contidos sobre o relacionamento do cabo-verdiano com a democracia deve ser tomada com um grito de alerta quanto à degradação da imagem já sofrida pelas instituições sob o impacto do populismo infiltrado nos partidos políticos. Populismo esse que encontrou aliados nos velhos inimigos da democracia representativa que nunca deixaram de repetir que pluralismo é desperdício de recursos e que a defesa dos direitos fundamentais é um obstáculo à democracia musculada necessária para acabar com a insegurança. Opor-se à degenerescência da democracia é fundamental para preservar a liberdade e garantir a igualdade de oportunidades e justiça. Não é a tarefa que se deixa para fazer depois. O próximo Afrobarómetro tem que poder mostra uma inversão da tendência actual na confiança na democracia. ![]()
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 857 de 02 de Maio de 2018.
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