Quem é Eugénio Tavares?

PorPierre Franklin Tavares,5 jun 2018 6:56

​Versão ligeiramente encurtada da intervenção do autor durante o lançamento do livro Poésie et Créole chez Eugénio Tavares, na passada sexta-feira, na Biblioteca Nacional, na Praia.

A questão parece antiga. Pois, pensamos saber tudo sobre Eugénio Tavares: seus poemas, suas datas de nascimento e de morte, seus combates políticos, seu bigode, seus amores, suas célebres Mornas e a sua lenda. No seu tempo até se falou extensivamente sobre ele. Seus amigos também. A tal ponto que todos podem hoje dizer pelo menos uma palavra sobre ele. No entanto, assim que é colocada, ainda que trivialmente, a questão de quem é Eugénio Tavares soa imediatamente como nova, nova e sempre actual. É porque ainda não terminamos com Eugénio Tavares. O marco institucional da celebração dos seus 150 anos é testemunho disso. É que não é apenas um objecto de curiosidade ou um assunto de lendas, mas permanece em primeiro lugar um pensamento que surge como uma questão. Heidegger afirma que “o pensamento é uma caminhada feita de perguntas”. Pensar é questionar de acordo com a tradição da metafísica Ocidental. Pensar é renovar as questões, sem que as respostas as esgotem completamente.

Quem é Eugénio Tavares? Se Amílcar Cabral é um “grande homem” no sentido em que Hegel atribui essa noção, Eugénio Tavares é um «homem ilustre» da maneira como Plutarco entendia este conceito. E é um prestígio Cabo Verde poder contar, entre os seus filhos, com tantas pessoas notáveis. Então, como expor e pensar suas vidas? Por outras palavras, quais são as suas biografias? Inclinamo-nos a pensar que devemos avaliar as suas vidas, a partir dos grandes pensadores e das grandes ideias universais, sem as quais suas biografias permanecerão incompletas.

Não há nada mais difícil do que escrever uma biografia. Nietzsche pensava que, para conhecer uma pessoa, era necessário apreendê-lo em três pinceladas. Na sua curta biografia de Cabral, em epigrama, Mário de Andrade recorre-se a Hegel para definir o que é uma biografia. Plutarco, mestre nesta matéria, acreditava que uma boa biografia não deveria expor toda a vida de um homem, mas apenas revelar e expor as estruturas fundamentais, isto é, as suas principais características.

Ainda mais radical que Plutarco, Hegel ou Mário de Andrade, José Lopes da Silva, o mais francês de todos os poetas cabo-verdianos, impele para os seus limites a arte da biografia, precisamente no poema Teu Nome no qual ele “condensa” toda a biografia de Eugénio Tavares no estudo estilístico do seu nome: “Eugénio”. Ele faz isso por meio de um exercício semântico excepcional e surpreendente, no qual explora até ao limite todos os recursos, ao contrário de Louis-Jean Beaucarnot, o famoso especialista francês do segredo dos primeiros nomes. De facto, sem referência à etimologia do nome Eugénio, que significa “boa raça”, ou mais precisamente, ao contrário da abordagem etimológica, José Lopes abre e descobre o “segredo” de nome Eugénio ao dividi-lo em quatro “unidades” linguísticas, mais exactamente em três morfemas e um fonema:

Em primeiro lugar, José Lopes divide o nome em dois morfemas: “Eu” e “Génio”, e transfere imediatamente a sua atenção para o segundo, “Génio” para destacar o Génio daquele que ele chama “seu rival.” Assim, Génio torna-se a figura emblemática do génio poético.

Em segundo lugar, divide o morfema “Génio” em dois, para obter, por um lado, o fonema “G” e, por outro lado, o morfema “Ènio”. Porquê? Porque, neste, ele recebe “Enio” que nos remete para Ennio ou Enio, nome de origem italiana. Então, como não se pode pensar nas origens italianas de Eugénio Tavares, cujo bisavô paterno foi Giovanni Batista Nozolini? Mas, outra hipótese, que prolonga a anterior, merece nossa atenção. Na verdade, com “Enio” José Lopes parece talvez evocar Eneas, o personagem central da Eneida de Virgílio, que traça a vida do herói troiano chamado após a derrota de Troia e suas viagens marítimas, para se tornar a figura mítica de Roma (Latinium, Lavinium) e Cartago (Didon). Além disso, em grego, Eneas significa “cobre” e, em italiano, “aquele que sorri”. José Lopes estava pensando em um ou ambos os significados? [….]

A biografia semântica de Eugénio Tavares assenta-se prodigiosamente num único soneto que gira em torno de três grandes eixos. Em primeiro lugar, uma psicologia do conhecimento através da qual José Lopes descobre o “carácter” essencial de Eugénio Tavares: a de ser um “Génio”. Em seguida, um eixo historiográfico pelo qual ele relembra sua filiação (origem italiana), dando assim significado ao seu papel na história de Cabo Verde, comparando-o a Eneas, cuja saga foi contada por Virgílio. Finalmente, uma abordagem social que incorpora a tese principal de Aristóteles de que toda a sociedade se baseia e vive de um fundamento: “a Amizade”, como está escrito na Política. Por isso, inspirado em Plutarco, José Lopes da Silva concebe a sua existência e a de Eugénio como duas vidas paralelas, mas ao contrário de Plutarco, o paralelismo “lopesiano” das duas vidas acaba por se cruzar e se fundir. A sociedade hesperitana que eles queriam tinha sua base e seu modelo.

Todos aqui concordarão que José Lopes era ele próprio um génio. Senão, como condensar, em tão poucos versos, a biografia de Eugénio Tavares, cujo ponto central é o “Génio”.

Quem é Eugénio Tavares? Um “génio”, segundo José Lopes da Silva, mas ele não (nos) diz o que é, nem em quê terá consistido o seu génio. E, provavelmente, a sua proximidade (relação íntima entre o “Eu” e o “Génio”) impediu-o de o fazer, segundo a famosa lei psicológica de Claparède. O livro “Poésie et Créole chez Eugénio Tavares” tentasuperar esta lacuna conceitual, mostrando em quê Eugénio Tavares foi um génio, e em distinguindo esta noção de seu status de engenheiro da poesia e descobrindo toda a sua engenharia.

José Lopes considerou Eugénio Tavares um “génio”. E vislumbrá-lo foi o seu imenso e grande mérito. Para ampliar e completar o seu pré-sentimento (pressentimento), temos que alargá-lo, abrindo um novo campo semântico da palavra “génio” a duas de suas terminações: o engenheiro e a engenharia.

Na verdade, o génio de Eugénio Tavares consistiu em três audácias essenciais e sem precedentes: em primeiro lugar, uma ousadia intelectual que qualificaremos aqui de metafísica; segundo, uma audácia linguística e, finalmente, uma audácia poetológica. Na verdade, é uma audácia metafísica, quando, em Força de Cretcheu, traz a sua resposta à fraqueza de Deus que ele destaca em Mal d’amor que é o mal absoluto e a finitude da existência humana. Deus e seu médico (Jesus) não podem fazer nada contra a tragédia do amor. O único remédio é o amor em si que é diferente e está acima de Deus. Esta concepção não é apenas uma blasfémia no que diz respeito a todas as religiões monoteístas e ao cristianismo em particular. É antes de tudo uma concepção única na história universal das ideias. Em seguida, uma ousada linguística, já que Eugénio Tavares é o primeiro a fazer do crioulo (cabo-verdiano), língua popular e língua dos colonizados, uma língua poética por direito próprio, mostrando nos seus textos como ela carrega e suporta todas as restrições (categorias) da grande poesia. A esse respeito, o crioulo adquire um novo status e se torna uma língua nacional. Finalmente, uma ousadia poetológica, porque Eugénio Tavares é o primeiro a fazer as regras da poesia cabo-verdiana, uma poesia mestiça na sua essência e construção. Estes são, pois, as três audácias intelectuais de Eugénio Tavares, que fazem dele o pai da poetologia (ciência poética) cabo-verdiana.

O seu “génio” fez dele um verdadeiro engenheiro, um engenheiro poético, isto é, um poeta que, tal como o engenheiro, estudou, pensou, criou, implementou e realizou toda a tecnicidade e todas as artes (funções) necessárias e apropriadas para uma nova poesia.

É por isso que, na sua poesia, a métrica, a versificação e o silabismo se tornam tão importantes. Ele era engenheiro, isto é, num sentido autêntico, um “conhecedor”. É por isso que ele também usava um “bigode de guidão” que, em termos de penteado, é chamado “conhecedor”. O engenheiro (cientista) e seu bigode (sinal externo) estão em perfeita harmonia.

O génio, que é também um engenheiro, engendrará uma engenharia, quer dizer, uma obra poética, em que a Morna, que ele repensará e revisará de cima para baixo, e ao qual dará uma morfologia, permanece o ponto central.

Quem é Eugénio Tavares? Um génio, um engenheiro e uma engenharia! Por isso, ele não é o Camões cabo-verdiano, como afirmou Corsino Fortes, mas o Miguel Ângelo da poesia cabo-verdiana.

Hölderlin terminou o seu mais poderoso poema intitulado Souvenir, que eu traduzo por Sodade, com uma conclusão: “O que resta é o que criam os poetas “. Assim, neste lindo ano comemorativo, convido Cabo Verde a pensar no que criou Eugénio Tavares e o que “permanece”. Essa é a única mensagem que quis transmitir com o meu livro Poésie et Créole chez Eugénio Tavares.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.

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Autoria:Pierre Franklin Tavares,5 jun 2018 6:56

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  5 jun 2018 6:56

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