Cabo Verde na CEDEAO: A hipótese de uma integração diferenciada

PorBenfeito Mosso Ramos,14 jun 2018 6:30

1. Em sede dos princípios que devem nortear as relações internacionais, prescreve a Constituição da República no seu artigo 11º, nº 7, que o “Estado de Cabo Verde empenha-se no reforço da identidade, da unidade e da integração africanas (...)”.

Argumentos de peso terão por certo fundamentado essa opção constitucional, sendo de se crer que o mais determinante de todos terá sido o factor geográfico que colocou o Estado de Cabo Verde em África.

Assim, e com assinalável arrojo, pois que sem se esquivar mesmo da controversa questão identitária, a Constituição de 1992 veio confirmar a opção inicial da integração da República de Cabo Verde no continente a que pertence.

Ao mesmo tempo ela reforçou a legitimidade para a assinatura pelo Governo do Tratado Revisto da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) a 24 de Julho de 1993, instrumento refundador dessa organização, o qual viria a ser aprovado pela Assembleia Nacional e subsequentemente ratificado pelo Presidente da República, afinal os dois órgãos de soberania directamente mandatados pelo sufrágio universal para exprimirem, no âmbito das respectivas competências, a vontade do Povo de Cabo Verde.

Por conseguinte, do ponto de vista constitucional, institucional e da legitimidade democrática, não parece haver razões para se questionar a presença do nosso País na organização sub-regional.

2. Reconhece-se, entretanto, que o fenómeno da integração regional é relativamente novo e extremamente complexo, exigindo das partes envolvidas concessões recíprocas, nem sempre perceptíveis ou de fácil entendimento, a benefício daquilo que se tem por ganhos maiores na prossecução de um objectivo comum.

Outrossim, numa sociedade sem sólidos laços com a vizinhança do continente, porque mais virada para o Norte, quando se fala de integração regional, o modelo que vem logo à mente é o da União Europeia (UE), tido como um caso de sucesso porque conseguiu proporcionar benefícios imediatos e palpáveis às populações dos países que a ela aderiram, mesmo as que habitam regiões ultraperiféricas, como os arquipélagos que nos são relativamente próximos. Menos apelativa é já a ideia de integração em África, em especial numa sub-região assolada por conflitos, instabilidade política e, nos últimos tempos, até pelo terrorismo.

Daí que devam ser encaradas com naturalidade as reservas, ou até as objecções, que segmentos da sociedade cabo-verdiana colocam à integração em curso, de mais a mais quando a mesma não foi precedida, nem tem vindo a ser acompanhada, de suficiente e esclarecedor debate interno.

Seja como for, o certo é que por decisão dos órgãos de soberania competentes para o efeito, Cabo Verde integra a CEDEAO, opção que parece ser encorajada, se não mesmo recomendada, até pela própria UE e alguns outros parceiros do nosso desenvolvimento.

Logo, é essa condição que deve ser objecto de análise, com senso crítico, tendente à (re)definição de uma uma aprimorada estratégia de integração.

3. Parece ser consensual que a razão fundamental da adesão e da permanência do nosso país nessa Comunidade, indo para além de meras relações bilaterais com cada um dos Estados vizinhos, está no reconhecimento de que a mesma erige-se num quadro institucional de cooperação entre os seus membros, com vista à progressiva integração económica, o substracto de um alargado mercado comum, impulsionador do crescimento e do desenvolvimento de toda a sub-região.

Assim sendo, esse devia ser o foco principal da Comunidade.

Entretanto, a prossecução desse objectivo não tem conhecido os avanços que seriam de esperar, em parte devido à proeminência de outras funções que a CEDEAO acabou por chamar a si mesma, ou foi forçada a assumir, em especial, em sede de prevenção e resolução de conflitos na sub-região.

A isso acresce uma certa propensão para puxar a Comunidade para o que soa já a integração política, de que são exemplo, o mandato, tendencialmente supranacional, conferido aos principais órgãos comunitários, a decisão de transformar o respectivo parlamento em órgão legislativo e o princípio da directa vinculação dos Estados Membros às decisões da Conferência dos Chefes de Estado e do Governo, bem como do Conselho de Ministros.

Com isso, e sem que progressos no plano da integração económica já o pudessem justificar, acabou por se assistir a uma transformação na natureza e nos objectivos da CEDEAO que, da inicial organização de cooperação inter-governamental passou, em poucas décadas, àquilo que é já assumido pela respectiva liderança como uma organização supranacional, o que não deixará de ter significativas implicações para os Estados Membros.

4. Face a essa evolução, que coloca exigências e dificuldades acrescidas aos estados de menor peso e influência, em especial ao mais pequeno e menos populoso de todos, de mais a mais um território insular, este tem de ter bem presente a razão da sua presença na Comunidade e os objectivos que pretende perseguir nesse projecto.

Com efeito, apesar de o princípio da igualdade estar formalmente reconhecido no Tratado (art.º 4º, al. a)), e de ser aquele com que normalmente se espera poder contar, na prática o que se invoca com maior frequência é o princípio da equidade, numa interpretação afeiçoada aos arranjos políticos, determinados por lealdades recíprocas e pela lógica de que os ónus justificam os bónus.

E nesse aspecto, a desfavor do nosso país têm pesado pelo menos dois factores: (i) estar literalmente longe da vista, o que, associado àquilo que os restantes parceiros entendem como uma deficitária relação com a Comunidade, significa estar também longe do coração; e (ii) o facto de Cabo Verde ter vindo a denotar uma certa e compreensível prudência em relação a essa progressiva transformação da CEDEAO, em especial aos novos mandatos que a mesma foi chamando a si, particularmente em sede de intervenções militares para a prevenção e resolução de conflitos ou as operações nos Estados Membros para a “restauração da democracia”, em que sobressai a força militar conjunta, a ECOMOG.

Desse quadro derivam consequências para as quais, com realismo e em coerência, a parte cabo-verdiana deve estar bem ciente, sobretudo no que toca à hierarquização do seus objectivos e à graduação das suas expectativas.

5. Não é, no entanto, nada de surpreendente nem que deva ser exagerado no seu significado.

Com efeito, o artigo 68º do Tratado parece acolher e reflectir um consenso fundador no sentido de que a insularidade de Cabo Verde, a única situação de insularidade existente no contexto da sub-região, constitui já o embrião para um tratamento diferenciado, traduzido na possibilidade de se isentar esse Estado de algumas obrigações resultantes dos instrumentos jurídicos da Comunidade.

O mesmo é dizer que a actual Constituição da CEDEAO, em cuja negociação o nosso país já pôde participar, ao contrário do Tratado original, já admite que o processo de integração de Cabo Verde possa ser ajustado à sua insularidade e às decorrentes especificidades.

Trata-se de uma disposição constitucional impregnada de pragamatismo, pois que, ao incorporar uma certa flexibilidade, acaba no fundo por reconhecer que nem todos os países poderão acompanhar, ao mesmo ritmo, os passos da integração regional determinados pela maioria ou pelos países de maior influência. Alguns poderão, nos seus próprios interesses, desejar um nível de integração mais avançado, nomeadamente no plano político. Outros, por razões diversas e inteiramente justificadas, poderão não querer (ou não estarão mesmo em condições de) ir tão longe.

6. Ora, partindo desse pressuposto, parece que não se poderá encarar como descabida a eventual pretensão de Cabo Verde a uma integração diferenciada, focalizada nas componentes da integração económica, afinal a vocação original da Comunidade e razão de ser da sua decisão de aderir à mesma, reforçada pela partilha do princípio da convergência constitucional dos Estados Membros em matéria da boa governação, da democracia e do respeito pelos direitos do homem, valores que já estão vertidos no Tratado e nos seus textos complementares.

Na verdade, cremos que só uma integração diferenciada permitirá ao nosso País conciliar o estatuto de membro da CEDEAO com a sua condição de pequeno Estado insular, notoriamente incapaz de suportar na plenitude todas as decorrências do processo de integração, em especial a forte pressão migratória associada à livre circulação.

Reconhece-se, entretanto, que não será fácil acertar no plano formal os termos de uma tal diferenciação. Mas, em certa medida, ela já existe e é assumida na realidade.

7. Ainda assim, o acolhimento e o aprofundamento do princípio de uma integração diferenciada dependerá, entre outros factores, do grau de confiança que for possível incutir nos nossos parceiros sobre o efectivo engajamento de Cabo Verde no processo em curso.

Para isso revela-se já de grande significado, ao menos na sua dimensão simbólica, a designação de um Membro do Governo para se ocupar exclusivamente dessa agenda, bem como o anúncio da abertura de uma representação diplomática em Abuja, a sede da CEDEAO.

Em paralelo com essas e outras medidas de projecção externa, afigura-se imprescindível no plano interno conquistar a adesão da sociedade civil, em especial da Academia, bem como investir fortemente na formação de recursos humanos qualificados tendentes à produção do conhecimento especializado que possa permitir ao nosso país conhecer melhor o contexto subregional em que se encontra inserido e se preparar convenientemente para nele interagir com assertividade, exactamente o oposto da navegação à vista que tem prevalecido até agora.

Tem inteiro cabimento aqui a advertência de Benjamim Franklim, para quem by failing to prepare, you are preparing to fail.

8. Nesse aspecto o actual “Mestrado em Integração Regional Africana”, organizado sob os auspícios da UNICV, bem como as conferências e seminários que têm vindo a ser promovidos pelo Instituto para o Desenvolvimento e Democracia, constituem iniciativas dignas de registo e de encorajamento.

Finalmente, afigura-se de capital importância uma estreita articulação e coordenação entre os que têm o mandato ou a incumbência de exprimir a vontade nacional nas diversas instituições e nos diversos fora da Comunidade, por forma a se precaver contra agendas desencontradas e se preservar a coerência interna da estratégia de integração do Estado de Cabo Verde, delineada pelos órgãos de soberania competentes para o efeito.

Que se tenha sempre presente que, quem está em processo de integração é o Estado de Cabo Verde, não este ou aquele órgão de soberania, não esta ou aquela instituição.

(*) Versão resumida da comunicação apresentada na Escola de Negócios e Governação da UNICV no dia 28 de Maio, no quadro da celebração do dia da CEDEAO, a convite da Coordenação Académica do “Mestrado em Integração Regional Africana”. 

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Autoria:Benfeito Mosso Ramos,14 jun 2018 6:30

Editado porAndre Amaral  em  14 jun 2018 6:30

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