Nestas ilhas atlântidas do meio do mundo acontecem coisas estranhas e insólitas. Por estas bandas, está-se em estado progressivo de esquecimento activo e de apagamento de memória. É preciso resistir, reinventar o amor e recriar a memória.
…………..
praias
onde naufragaram
navios,
aonde aportaram
caravelas,
onde saltaram
marinheiros queimados,
corsários, escravos, aventureiros,
condenados, fidalgos, negreiros,
donatários das Ilhas, Capitães-Mores…
– Jorge Barbosa, “Panorama”, in Arquipélago, 1935
Tritão-Poeta
Há quem garanta que existem seres especiais, mitológicos – sirenas ou sereias – a que alguns homens, os mais sensíveis, não resistem aos seus (en)cantos e são enfeitiçados por elas. Há quem também jure a pés juntos, sobretudo as mulheres, que existem tritões, uma versão masculina de sirenas, que têm os mesmos ou mais dons que as sereias.
Quando crianças, contavam-nos estórias de sereias vistas a pentear-se à beira mar, nestas ilhas onde os Piratas se refugiaram, o Mar é mulher, os Poetas reinventam o amor e os Marinheiros casam-se com o mar.
Há pouco mais de 90 anos emergiu das águas de Sal-Rey um tritão. Conhecido nas ilhas como Daniel Filipe (Boa Vista, 1925 – Lisboa, 1964), o Tritão, trintão de 38 anos, é Poeta e sua obra mais conhecida é A invenção do Amor e Outros Poemas, revelado em 1961.
Desde1964 que o Poeta não é visto e dizem que é o silêncio do Tritão. Outros, que ele se exilou, outros ainda que se mudou para outros mares, mas os mais pessimistas dizem que ele migrou para a terra-longe onde tem “gente gentio que come gente” e de onde nunca mais volta.
Cinquenta anos depois, a lembrança do Tritão está a ficar cada vez mais esbatida na memória das gentes das ilhas.
É preciso reinventar o amor com carácter de urgência e reeditar o Poeta-Tritão.
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádios e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão das angústias
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana
– Daniel Filipe, “A invenção do amor”, in A invenção do Amor e Outros Poemas, 1961
Capton Farel, O Pirata de Monte Joana
– Cap’tõ-farel?
– Senhor Meu!
– Q’anto vintem tem na caxinha?
– Vinte cinc!
– Q’al é maior?
– Cavalin de Nossenhor!
– Pó de plõ quêmou?
– Quêmou!
– Entõ, real castigue na quem merece!
Eram estes os versos de um jogo da nossa infância, “uma eventual nesga muito fininha da memória do Capitão Farewell”, segundo Leão Lopes.
Capitão Farel. A Fabulosa História de Tom Farwell, o Pirata de Monte Joana (ponto&vírgula edições, 2006), a estória de Leão Lopes, é dedicada a Paloma, Ary e Sassa, jovens adolescentes, e a Johnny Depp, seu herói no filme “Piratas das Caraíbas”, mas é também para todos os meninos do mundo.
“Eu vou contar a história de um pirata. É uma história que há muitos e muitos anos prometi contar e assim resgatar a verdadeira e maravilhosa história de Thomas Farewell, ou bem Tom Farewell, o Pirata de Monte Joana.
É uma história como muitas outras, cheia de surpreendentes revelações, com segredos e enigmas pelo meio, mas uma verdadeira história de um pirata sem olho de vidro nem perna de pau (…)”.
Começa assim a estória que vai prender os leitores/ouvintes juvenis numa leitura-viagem de perto de duzentas páginas (27 capítulos), deixando-os de olhos grilidos e boca aberta de estupefacção.
Leão Lopes garante que o pirata inglês existe e a sua segunda vida foi vivida em Santo Antão há mais de cem anos, tendo durado até um certo dia de Julho de 1975, quando morreu de facto. Mais, o seu Capitão Fareweel, que é o nosso Capton Farel, pode ser visto em Fontainhas, num certo dia de Novembro – mês de neblinas e mistérios – quando ele sazonalmente visita a sua amada aldeia. Isto, desde que cumpridos quatro preceitos, sendo o primeiro o de os meninos lerem esta estória do princípio ao fim; aprenderem a cantar à capela dois tons acima de Manel Jei; aprenderem a dançar bem a contradança; e construírem uma catrega (um disco dentado feito de restos de cabaça rodando entre palhetas de cana de cariço).
Chegada a esta parte os leitores estarão a perguntar onde poderão adquirir o livro Capitão Farel. A Fabulosa História de Tom Farwell, o Pirata de Monte Joana. Em parte nenhuma porque, infelizmente, está esgotado diazá e esta foi a forma encontrada para apelar ao autor e a quem de direito a sua reedição.
“O que é que aconteceu com uma gente alegre e laboriosa, uma gente viva e empenhada, para perder a memória de si própria?”
De facto, nestas ilhas atlântidas do meio do mundo acontecem coisas estranhas e insólitas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.