Do outro lado da rua

PorEurídice Monteiro,8 ago 2018 7:06

​Num sábado de manhã, em conversas de café, inquirimos uma vintena de moradores e visitantes do centro histórico da capital sobre a localização do Museu Etnográfico da Praia, esse que, segundo ouvir dizer, é a primeira experiência museológica no arquipélago. Curiosamente, exceptuando meia dúzia de homens e mulheres, já de meia-idade, que sabiam até quem foram os últimos herdeiros do edifício que foi transformado em museu, uma ou outra pessoa sabia ao certo a sua localização.

Com curiosidade ou perplexidade, acompanhámos atenciosamente uma jovem que dizia ter vaga ideia sobre um museu no Plateau: «se calhar, fica do outro lado da rua, lá mais para o fim da Rua 5 de Julho, naquele casarão antigo cheio de coisas velhas e estranhas – binde, pilão, balaio, aquele velho ferro de carvão com galo à cabeça, vassoura velha, coisas velhas e outras coisas assim.» Não é curioso a associação da palavra museu com «coisas velhas», mas é, de certa forma, um pouco estranho a associação de objectos do quotidiano do povo caboverdiano e da memória colectiva com «coisas velhas e estranhas». Aliás, ainda hoje em dia, «binde, pilão, balaio» são objectos de uso doméstico, embora em maior escala e com maior frequência no mundo rural.

Entretanto, falando de perto com alguns agentes culturais, nota-se uma preocupação com a fraca ligação entre o museu e a sociedade. Apesar do esforço no sentido de edificação deste simbólico museu, as críticas já foram extensíveis ao seu funcionamento como se fosse uma sala de exposição permanente. Ainda assim, essa colecção de objectos materiais são da mais diversa espécie, desde áreas específicas como a olaria, a panaria, a cestaria, os utensílios de moagem e acessórios, a transformação do leite, o fabrico do queijo e manteiga, o consumo do tabaco kankan e a vida rural (agricultura e criação do gado). Isto permite, em última instância, assegurar a rememoração e a revalorização dos utensílios tradicionais da vida doméstica. Contudo, para além das críticas ao funcionamento do museu, também a ênfase recai na fraca frequência, ainda que esteja num casarão antigo com uma bela fachada principal e já totalmente reabilitado, ainda por cima localizado no coração da cidade numa das ruas mais emblemáticas da capital (no último quarteirão da outrora denominada Rua Direita do Pelourinho; posteriormente, Rua de Dom Luís; mais tarde, Rua da República; e actualmente, Rua 5 de Julho, que é a conhecida rua pedonal).

Em relação aos primeiros proprietários do edifício onde o museu se encontra alojado, as fontes históricas deixam alguns indícios de que, entre 1840 e 1876, pertencera a uma personalidade proeminente (provavelmente ao Sr. João Bento Rodrigues Fernandes, popularizado como Nhu Filili), embora não existam outras informações que permitam a identificação desse proprietário nem o ano da construção do edifício. Independentemente da dificuldade de identificação do primeiro proprietário, moradores do centro histórico da capital confirmam ainda que os últimos herdeiros do casarão foram “os irmãos Bento”. Em todo o caso, “concebida como casa senhorial, esse edifício possui um desenvolvimento espacial e tipológico próprio da Arquitectura Neoclássica que aparece como modelo nas colónias no fim do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, e serve como referência para reconstruir uma boa parte da memória urbana e arquitectónica da Cidade da Praia.” Daí que a “escolha desse edifício para acolher o Museu Etnográfico da Praia não foi por acaso, visto que o próprio edifício constitui um património cultural de elevada importância, portanto, susceptível de cuidados no sentido da sua preservação”, lê-se no seu descritivo. Isto pressupõe uma visão integrada desse museu como um lugar de memória, de sentidos/significados e de saberes, com uma forte articulação com a história social, onde a própria configuração física do museu é de extrema importância na rememoração.

Um outro exemplo do valor do edifício na edificação museológica é a Casa-Museu do Senador Augusto Vera-Cruz, um espaço de arte tradicional, recheada de artefactos sobre as tradições dos artesões nacionais (olaria, cestaria, tecelagem, artefactos musicais e batik). Situa-se junto à Praça Nova, no centro histórico da cidade do Mindelo. O edifício onde se encontra alojado pertenceu ao senador Augusto Vera-Cruz, tendo sido construído entre 1890 e 1895. Essa mesma casa, nos primórdios da instituição escolar no arquipélago, foi cedida pelo senador no ano de 1917 para funcionar provisoriamente como Liceu, o que estendeu por um período de três anos, ou seja, até à construção do Liceu Gil Eanes. Por causa da forte influência do senador, essa casa tem um histórico de intensa actividade cultural e de cidadania em favor da ilha de São Vicente, chegando inclusive a servir de espaço de devaneio da alta sociedade mindelense, dinamizadora do clássico Grémio Recreativo do Mindelo, de sede da Rádio Barlavento e de Centro Nacional de Artesanato. Neste caso, trata-se de um exemplo que remete para o valor do contexto e das práticas narrativas locais e de como permitem ampliar as significações locais e rememorar a história e as experiências vivenciadas no espaço e ao longo do tempo numa cidade. Essas lembranças do tempo e da cidade transpostas para dentro de um museu possui eventualmente um fim prático que é o de fortalecer a identidade pessoal e colectiva da população local, de resignificar o seu cosmopolitismo, de historizar o seu quadro de referência e, em última instância, de reivindicar o seu reconhecimento no panorama identitário e político nacional. Nisso reside uma articulação entre as revindicações locais e os projectos museológicos com uma dada ancoragem territorial.

Um outro lugar de memória é o Museu da Resistência-Campo de Concentração do Tarrafal, onde se encontra uma exposição permanente que relata a vida no Campo de Concentração e as histórias de sobrevivência na prisão colonial do arquipélago, neste caso particular, na ilha de Santiago. Marcado pela prática de punição, primeiramente, dos opositores metropolitanos ao regime fascista instalado em Portugal (com a denominação de Colónia Penal do Tarrafal, 1936-1956) e, posteriormente, dos anticolonialistas africanos (com uma nova designação de Campo de Trabalho de Chão Bom, 1961-1974), este museu tem actualmente a ambição de tornar-se um património mundial da humanidade.

Numa situação extremamente privilegiada encontra-se o Núcleo Museológico da Cidade Velha, devido ao título de Património Mundial da Humanidade conferido àquela cidade, em 2009, pela UNESCO. Este núcleo museológico é composto por uma vertente arqueológica, resultante de pesquisas subaquáticas e terrestres realizadas nesta primeira cidade colonial do arquipélago e a nível mundial, e por uma vertente etnográfica, resultante de uma recolha de objectos etnográficos em algumas localidades do município. E é por isso, alvo de inúmeras excursões de estudantes, turistas e curiosos.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 870 de 01 de Agosto de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,8 ago 2018 7:06

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 ago 2018 7:06

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