Respirando música em casa, seja através da discografia cabo-verdiana disponível, ou “observando o pai a tocar música cabo-verdiana”, Tony Lima, na primeira fase do seu trajecto, dá os primeiros passos na aprendizagem informal do violão, fora do contexto escolar, é certo, mas, depois, “o meu pai resolve matricular-me com os meus irmãos numa escola de música, relativamente perto da nossa casa, que ficava ali na Point E”, também em Dakar. Na escola de música dirigida por mestres, e já com as bases do violão adquiridas em casa, aprende, de seguida, o acordeão, ao mesmo tempo que reforça a sua educação artística com a prática musical.
Com efeito, antes de alinhar com qualquer projecto de aprendizagem formal da actividade musical, Monteiro Lima ganhara o gosto pela música cabo-verdiana no seio da família, através do pai, sobretudo, ouvindo composições interpretadas por cantores antigos como Marino Silva e Fernando Quejas, primeiro, e, depois, Bana, Luís Morais e Voz de Cabo Verde. Assim, a educação musical, numa primeira fase de socialização de António Lima, processa-se, entre 1957 e 1964, através desses grandes intérpretes que o influenciam e o marcam profundamente, graças à discografia cabo-verdiana na posse do seu genitor. Todavia, das grandes vozes das ilhas que, ainda na infância, conhece no Senegal, Bana terá sido, seguramente, a referência musical que, através da sua voz inconfundível, “alimentou a minha identidade crioula e fez com que eu me sentisse cabo-verdiano”. Por força da cultura cabo-verdiana encontrada em casa, Tony não interioriza, no início, a música senegalesa que, de resto, não lhe interessava tanto, naqueles anos, como, aliás, ele próprio refere, pelo menos até à penetração nesse país de certos ritmos musicais estrangeiros interpretados com guitarra, contrabaixo, tumbas, timbales, maracas, ou guiros, que anuncia a era da chamada música afro-cubana no Senegal. Basicamente, entre os anos 50 e 60, que coincidem com a infância e a adolescência de Tony Lima, o ambiente musical senegalês de então caracterizava-se pela chegada a esse país, primeiro do tchá-tchá-tchá, uma dança latino-americana originária de Cuba e derivação do mambo e da rumba, por volta de 1953-1954, mais concretamente. Depois, na linha do fenómeno da fusão e de apropriação despoletado com o advento do tchá-tchá-tchá, assiste-se, igualmente, à introdução, no espaço musical senegalês, da rumba e de outros ritmos de cariz afro-cubano, sobretudo da salsa, já na década de 60, de resto muito apreciada pelos senegaleses, a par do sucesso de Ibra Kasse com a sua Star Bandque, inicialmente, toca música latina com tempero afro-cubano.
Sob o impacto da salsa, que resulta da evolução, no tempo, da música afro-cubana, que se universaliza e ganha peculiaridades, particularmente no Senegal, abrem-se as primeiras escolas afro-cubanas de Dakar donde sairiam prestigiados músicos senegaleses como Raymond Fernandez, guitarrista e músico de origem cabo-verdiana, um dos companheiros de estrada do conjunto Star Band, e ainda, Luís Vera da Fonseca, filho de mãe senegalesa e de pai cabo-verdiano. Numa sociedade dinâmica marcada pela diversidade cultural e musical e, ainda, pela abertura ao mundo, viria a emergir, igualmente, a partir dos anos 60 - 70, na cena da dita música popular e tradicional senegalesa, o Mbalax, um género musical versátil e fortemente ancorado na percussão, que resulta da “transposição de ritmos tradicionais para instrumentos elétricos”, logo na fase inicial. Até lá, existiam na vida urbana do Senegal, país de etnias e de ricas tradições do continente negro, “praticamente só (orquestras dançantes, tocavam exclusivamente para uma elite e mantinham um repertório europeu”, além de alguns grupos musicais virados para o jazz como, por exemplo, o Saint Lousien Jazz e o Amical Jazz de Saint-Louis, entre outros. (Katharina Dorning, 2016). Mais tarde, Youssou N’Dour, nascido e criado no bairro da Medina, em Dakar, no dia 1º de Outubro de 1959, prestigiado compositor e intérprete musical, viria a estilizar e a modernizar o Mbalax com a sua famosa banda Super Etoile de Dakar, fundada em 1977, através da mistura de ritmos tradicionais dos tambores dos wolof, de sonoridades afro-cubanas, de pop americano e da incorporação de percussões.
Pela imposição natural do contágio permanente com a mãe, que cantava muitas mornas, em casa, e com quem, aliás, “aprendi a justeza da melodia”, Tony, “desde pequenino”, adquire a “mania de cantar”. Em 1967, chega a Tours, cidade natal do escritor francês Honoré de Balzac, a fim de ali prosseguir os estudos e, no ano seguinte, participa activamente no histórico movimento estudantil reivindicativo de Maio de 1968, na França, que “simbolizou o meu despertar para a realidade de um mundo de luta, de solidariedade e de entrega para a causa de uma vida, a causa da independência da terra dos meus pais e que escolhi para ser minha”. É, pois, naquele ambiente de efervescência político-social, que António Lima, ainda jovem, procura integrar-se da melhor forma e como pode. “A minha integração começa pelo desenvolvimento dos meus conhecimentos políticos, ou seja, foi através da política que eu apoiei o PAIGC e de que me tornei militante em 1967, sobretudo na mobilização de pessoas na França, mas, também, através da cultura e, particularmente, do teatro”.
Durante os seus primeiros anos na Universidade, intervindo já no plano meramente cultural, cria grupos de teatro constituídos por senegaleses e cabo-verdianos e, ainda, por gente das Antilhas, da Martinica e do Guadalupe, numa espécie de mèlange étnica, torna-se membro activo da FEANF – Federação dos Estudantes da África Negra em França e, ao mesmo tempo, empenha-se, particularmente, “na mobilização e na política, através da cultura”. É, aliás, assim que nasce o projecto de criação do grupo de teatro Kaoguiamo, precisamente “no dia seguinte ao da morte de Cabral, em Janeiro de 1973”, com o intuito de, na França, “mobilizar cabo-verdianos e guineenses para a independência, através da música e do teatro”. Constituído, logo na sua fase de arranque, por cerca de 10 (dez) elementos, entre os quais se destacam Tony Lima, fundador e líder do Kaoguiamo, os irmãos José Eduardo (Jojó), Diana Deolinda e Jorge, a Alice, a Adélcia e a Mena Barreto, e, ainda, o Bonga (Angola) e o Marcel (Congo Brazzaville), o grupo transnacional, após ter feito várias digressões e editado o LP Korda Scrabucom a chancela do PAIGC, termina o seu percurso, em 1975, com “o meu regresso definitivo a Cabo Verde”. Considerando-se “militante da cultura e não dramaturgo”, Tony Lima, casado e pai de cinco filhos, compôs uma peça de teatro e algumas obras musicais que figuram no LP Korda Scrabu, na linha da chamada música de intervenção, ou de protesto, com realce para a composição Amílcar Cabral, feita precisamente no dia do assassinato do líder pan-africano, num grito incontido de revolta.
Como compositor e intérprete engagé, Monteiro Lima, também ele um dos fundadores do grupo musical Simentera, em 1991, afirma não se ter deixado influenciar, nas suas composições, pela música senegalesa, que admira, ou pela música francesa, que conhece durante os anos em que vive na França, se bem que, em qualquer circunstância, advogue a abertura do músico ao mundo, contra todo o fechamento, porquanto a própria música é, também, expressão de cultura. “Eu ouvia tanta música francesa, o Adamo, o Jean Ferrat e outros bons compositores franceses de que tanto gostava, mas não fui influenciado por nenhum deles. Simpatizava-me, igualmente, com os Beatles e os anglófonos, mas as minhas composições eram todas elas feitas em crioulo”. Todavia, antes de se considerar compositor utilizando exclusivamente a língua cabo-verdiana, já escrevia poemas em francês, desde os seus 15 anos de idade, dos quais alguns feitos na França, naquele período turbulento de 68, que “descrevem as minhas inquietações e a evolução do meu ser naquela altura”. Em 2003, o então Centro Cultural Francês, na Praia, viria a publicar os poemas e as letras das composições musicais do autor editadas já no seu CD, num livro intitulado Herances et réminescences. Virado sempre para a área musical que, desde cedo, o fascina, Tony Lima, à margem da sua actividade diplomática como Representante Permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, coparticipa, mais tarde, em 2012, na edição de um CD com 12 (doze) faixas, intitulado Ambassadors Sing for Peace, ao lado de um grupo de colegas Embaixadores de diferentes países e culturas acreditados em Nova Iorque. Numa iniciativa, a todos os títulos, louvável, a favor da paz, a produção discográfica de qualidade, com arranjos musicais de Gary Fry, para lá daquilo que possa representar nos planos da estética e da interculturalidade, é uma demonstração inequívoca da existência de uma forte conexão entre a cultura e a música, de que, aliás, esta última é expressão maior, enquanto forma de arte profundamente comprometida.
(Última parte).