Justiça, nem como testemunha

PorEurídice Monteiro,6 nov 2018 6:41

​Outro dia, já era quase noite, ouvi uma mulher a dizer que ela nunca foi à justiça, nem como testemunha. Isso soava como um garboso autoelogio da conduta exemplar pela qual foi pautando ao longo da vida. A mulher, de pouco mais de um metro e meio de altura e setenta ou oitenta anos de idade, dirigia-se com meias palavras a um neto ainda moço e refilão.

Fiquei a pensar no que teria motivado a rija entre neto e avó, assim como na afeição da anciã pela lei e do seu temor pelas barras da justiça. Tenteime aproximar de mansinho, mantendome entretanto a uma distância relativa. Logo depois apareceram as autoridades, que os vizinhos mandaram chamar, e vi uns curiosos a se aproximarem e outros a tentarem fugir estrategicamente para o largo com o propósito de não servirem nem como testemunhas.

Foi há coisa de pouco tempo, há menos de uma semaninha. Na altura, decorria o aguardado debate parlamentar anual sobre o estado da justiça em Cabo Verde. Pelos argumentos e contra-argumentos esgrimidos, depreende-se que pouco ou nada há de novo (para além do desmentido do Governo sobre os dados apresentados pelo Conselho Superior do Ministério Público) para expor quanto à realização da justiça cá nas ilhas.

Aliás, denota-se que, há já algum tempo, por ocasião do estado da justiça que é considerado como o primeiro grande debate parlamentar de cada ano político, temos assistido praticamente a uma mesma conversa parlamentar. No fundo, parece até que o debate é o mesmo todos os anos, de tal sorte que, ouvido o debate de há uns dez anos atrás, fica-se com uma sensação de que já não será necessário ouvir mais, nem nos próximos anos. Pois, é como se fosse a mesma coisa, repetindo tal coisa ano a ano. Ainda que se troquem de lado os actores políticos, o conteúdo na sua substância tende a conservar-se quase intacto. Se para a situação a coisa está a melhorar, já para a oposição está a piorar ou pelo menos nem tudo que reluz é ouro.

É por esta razão que o jogo político tem vindo a sobreporse ao que deveria se constituir como preocupação ou prioridade nacional. Outras vezes perde-se bastante tempo com as controvérsias de juristas sobre a justiça. E por isso, passa-se quase sempre ao lado das preocupações sociais relativas à realização da justiça, que constantemente tem sido alvo de fortes críticas por causa do seu funcionamento, da percepção da ineficiência do sistema judicial, do drama da morosidade na justiça e até do consentimento generalizado sobre a necessidade da melhoria do sistema da justiça.

Verdade seja dita: seria bom do ponto de vista social que, por exemplo, constasse no relatório anual da justiça as justificações pelo arquivamento dos processos. Ou seja, o número de processos que foram arquivados quer porque o Estado não investigou, quer por não ter investigado convenientemente, e o também número de processos que por motivos diversos ficaram tão-somente a dormir nas prateleiras empoeiradas das procuradorias até à prescrição.

Pressente-se que talvez seja frustrante um cidadão ser notificado que a sua queixa foi arquivada, porque o Estado simplesmente não fez nada para que houvesse justiça. Mesmo nos casos em que os danos que levou à apresentação da queixa continuarem visíveis no corpo e presentes na alma das pessoas. A título de exemplo, um cidadão que apresenta uma queixa, porque foi caluniado ou ofendido na sua honra e dignidade, e que isso o afectou de forma irrevisível, nomeadamente na sua relação familiar, dificilmente poderá aceitar de ânimo leve que o Estado abdicou de lhe proporcionar a justiça.

Denota-se que poderá ser igualmente frustrante que uma pessoa que dê entrada no Tribunal de um processo tenha que esperar 4, 5 ou 6 anos para ter uma sentença definitiva do caso pelo qual deseja a justiça. Existirá também aqui um grande sentimento de injustiça. Porque a injustiça não é somente vista como a ausência da justiça, ela é encarrada também quando se pressente que há uma demora inaceitável para a solução de um processo judicial.

É certo que poderão existir processos que, pela sua natureza e origem, deverão merecer prioridade do sistema judicial (como por exemplo, as situações em que há pessoas em prisão preventiva). Entretanto, tudo indica que há (pelo menos fica-se com essa sensação pelas notícias veiculadas através dos órgãos de comunicação social, nas redes sociais ou noutros circuitos da comunicação na arena pública informal) maior preocupação com o andamento dos processos que têm maior impacto mediático.

Pelo que, vendo do ponto de vista social e para lá disto, seria interessante que a sociedade civil tivesse conhecimento, além dos processos que a lei estabelece que devem merecer tratamento prioritário, dos critérios pelas quais os processos judiciais têm sido resolvidos. Pois, parte-se do princípio de que a regra deve ser, ressalvando as excepções estabelecidas na lei, de acordo com a ordem de entrada nas instâncias judiciais.

Para agravar a apreciação pouco abonatória que o cidadão tem da justiça e o sentimento de impunidade que frequentemente prevalece em relação a casos comuns e outros mais agravados, acresce-se a inoperância do sistema para dar resposta a preocupações colectivas. Basta recordar-se que, no ano judicial que terminou (2017-2018), o país assistiu, com tristeza e desassossego, à notícia do desaparecimento de pessoas (nesse caso, crianças) e que, passados já largos meses, a resposta das autoridades judiciais e policiais continua a ser somente esse longo silêncio. Não fosse a sensação de impunidade ou descaso do sistema judicial, teríamos cidadãos mais activos e uma sociedade civil mais pujante, o que teria um impacto positivo na qualidade desta democracia insular.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Tópicos

justiça

Autoria:Eurídice Monteiro,6 nov 2018 6:41

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  6 nov 2018 6:41

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.