O ensino privado na educação: perspetiva histórica

PorAdriana Carvalho,27 nov 2018 6:47

​O debate em torno das esferas pública e privada do ensino é, geralmente, contaminado por predisposições ideológicas firmes e inabaláveis: umas a favor do ensino público, sustentadas no axioma da primazia dos direitos de educação para todos; outras em prol do ensino privado, ancoradas na defesa da individualidade e das liberdades fundamentais. Geralmente, o meio termo encontra-se, de forma pragmática, quando às convicções ideológicas se sobrepõe a decisão de colocar os nossos filhos em escolas que julgamos melhor se ajustarem ao nosso (deles) bem-estar e lhes garantam resultados eficazes na dura competição do percurso escolar e académico.

O cerne da questão, na ótica de Barroso (2003)1, reside no conceito de educação: um “bem comum” – público ou um “bem de consumo” – privado? Deve ser regulada pelo Estado ou pelo mercado? A esbater a dicotomia os exemplos sincréticos e híbridos de escolas privadas financiadas também pelo setor público e de escolas públicas com gestão privada.

Sem espaço para continuar a discorrer sobre esta problemática, porque o foco da coluna é a historiografia da educação, [re]cortei no tempo conjunturas históricas, que demonstram o carácter pioneiro do ensino privado na escolarização (sensu latu) dos cabo-verdianos, ao antecipar lentas e, por vezes, erráticas decisões em matéria de politica educativa pública.


I – Precursores da ação educativa nas ilhas (séculos XVI-XIX)

Nos quatro primeiros séculos da colonização, o ensino foi ministrado por membros do clero no cumprimento da missão de expandir o culto da religião católica. A catequização de crianças, jovens e adultos implicava a aprendizagem, mesmo que rudimentar, das primeiras letras ensinadas por mestres-escola, a maioria elementos de ordens religiosas, nem sempre com habilitações adequadas e vocação para a docência. Não obstante essa limitação, a disseminação das escolas nas ilhas – aulas de leitura e escrita, moral, gramática latina e formação eclesiástica – foi da iniciativa da Igreja Católica.

A primeira escola pública de instrução primária foi instituída na vila da Praia em 1817, tendo sido encerrada “pouco tempo depois devido ao assassinato do professor”2. As bases legais do ensino primário oficial nas províncias ultramarinas (incluindo Cabo Verde) datam de 1845. Nessa data nasceu a rede oficial do sistema escolar.


II – Os colégios: alternativas ao ensino secundário oficial (anos 20/30 do século passado)

Em 1912 o ensino secundário resumia-se ao Seminário Liceu de S. Nicolau3 (1866-1917), de matriz confessional e muito fragilizado devido ao anticlericalismo do novo poder político – a República. As urbes mais importantes da colónia, Praia e Mindelo, desprovidas de ensino secundário, disputavam a instalação de um liceu, o nível mais elevado possível na colónia.

Mais uma vez, o ensino privado antecipou-se ao público ao instalar em Mindelo um instituto particular de educação e ensino neutro – o Colégio Esperança (Portaria n.º 402, de 9 de dezembro de 1914). Três anos mais tarde seria instituído, nessa cidade, o primeiro liceu laico e oficial (Liceu Nacional, depois Liceu Infante D. Henrique e Liceu Gil Eanes).

A Praia, capital da colónia, continuou durante muitos anos sem liceu oficial. Por iniciativa de Leão Gomes de Pina3, em 6 de outubro de 1932, foi criado o Colégio-Liceu Serpa Pinto. Em 1933 contava com “uma frequência efetiva de mais de 100 alunos, os quais, na sua maioria oriundos desta Ilha [Santiago] e que não podem, por míngua de recursos materiais, frequentar o Liceu Infante D. Henrique, em S. Vicente” (Petição ao governador, de 13 de abril de 1933).

Se é verdade que os dois colégios, em épocas diferentes, não conseguiram funcionar durante muito tempo, é facto que preencheram, ao menos simbolicamente, um vazio no panorama educativo e cultural das cidades – a inexistência de um estabelecimento de ensino liceal.


III – A primeira universidade de Cabo Verde (finais do século XX, dealbar do XXI)

O fim da centúria de XX e o início do século XXI foram marcados, no plano educativo, pela emergência do ensino universitário. Apesar da Universidade de Cabo Verde ter sido criada em 7 de agosto de 2000 (Resolução n.º 53 que não passou do papel), só seis anos mais tarde seria instituída de facto (Decreto-Lei n.º 53, de 20 de novembro de 2006).

Enquanto o poder público ponderava (hesitava) quanto ao modelo a ser seguido pela universidade pública, o Instituto Piaget de Portugal, “instituição cooperativa sem fins lucrativos dedicada ao ensino superior”, manifestou a pretensão de se instalar em Cabo Verde e, em 30 de abril de 1999, celebrou um protocolo com o Ministério da Educação. O processo decorreu com assinalável eficácia. A Universidade Jean Piaget de Cabo Verde foi reconhecida oficialmente pelo Decreto-Lei n.º 12, de 7 de maio de 2001 e iniciou de imediato as suas atividades.

De novo, o ensino privado ultrapassa a hesitante máquina estatal. A primeira instituição universitária de Cabo Verde foi uma universidade de ensino particular e cooperativo.

Esta simples e (in) significativa amostra permite-nos aquilatar a importância do ensino privado na história da educação em Cabo Verde; permite-nos perceber que as esferas do ensino público e privado sempre coexistiram, substituíram-se, toleraram-se, complementaram-se. Desconstrói a tradicional dicotomia público/privado, considerando (entre outras razões) a diversidade e heterogeneidade das escolas particulares: explicações em casa de professores, cursos noturnos, escolas confessionais, colégios “pretensamente para elites” e, mais recentemente, escolas internacionais.

O texto é escrito segundo as normas do novo acordo ortográfico.


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 886 de 21 de novembro de 2018.

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Autoria:Adriana Carvalho,27 nov 2018 6:47

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 nov 2018 6:47

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