Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo cabo-verdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o cabo-verdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do cabo-verdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto à questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação cabo-verdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido cabo-verdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.