Um Futuro a Construir e uma observação interessada

PorJúlio Correia,16 jan 2019 6:11

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​Li, com algum cuidado, o livro de Francisco Pinto Balsemão e de José Maria Neves.

Não pretendendo aqui nestas linhas fazer uma recensão crítica ao livro “Um Futuro a Construir”, nem me arrogo da intenção para uma análise académica sobre o diálogo destas duas personalidades e o seu pensamento sobre a democracia e a governança. Estas linhas são uma tentativa de releitura, em face dos dados reais que me são dados a observar em Cabo Verde. São estas linhas, se tanto, um exercício de observação interessada.

Uma observação interessada sobre a crise dos partidos tradicionais, o surto do “liberalismo” nas democracias, o surgimento do populismo e de propostas fora dos padrões partidários, a relativização das liberdades, os direitos e as garantias em face dos novos equilíbrios políticos, as novas tecnologias informacionais e o triunfo das fake news, questões hoje tornadas globais e que, com mais ou menos força e resistência, afectam todos os países.

Uma observação interessada sobre como os autores, figuras de experiências políticas e ideológicos diferenciados, tendem a procurar uma plataforma de centro suscetível de permitir o diálogo, o entendimento e a convergência, facto que por si só devia criar uma escola, um caminho, no ser e estar na política. Deviam ainda tais propostas resultar numa “abertura para ponderar as problemáticas contemporâneas”, a partir da recusa de extremismos e do abraço à tolerância do outro como nítido espelho do eu, tanto individual como colectivo.

Tendo os autores sido ambos chefes de governo, um de Portugal e outro de Cabo Verde, e respectivamente líderes partidários, um do PSD e outro do PAICV, adicionados a estes backgrounds o facto de se manterem opinion makers nas sociedades em que se inserem, não pode deixar de constituir matéria para reflexão e debate os assuntos por eles levantados e da forma como os expuseram, quer em conferências quer agora em forma de livro, com claro desafio de colocar em debate estas novas problemáticas.
Pessoalmente, entendo, um tanto inspirado pela leitura, que se outrora a grande questão era indagar aos partidos que modelo de sociedade engendrar e propor, agora, a questão inverte-se e importa questionar a sociedade sobre que partidos organizar e como estes, enquanto produção da sociedade, devem estruturar-se e comportar-se.

Se outrora era mister lideranças partidárias centralizadoras e fortes, agora os cidadãos militantes, ciosos dos seus direitos e deveres, só devem legitimar lideranças descentralizadoras e capazes de gerir a pluralidade da cidadania partidária.
Nos dois principais partidos cabo-verdianos, na suposição de que são o mainstream, os dados parecem estar lançados em relação a mudanças de fundo em termos de atitudes e comportamentos a ter.

Sendo partidos fortes, ambos do arco da governação, precisam de apostar mais na democratização interna, nas lideranças mais policêntricas e na inversão da relação com a sociedade pois esta detém hoje a cidadania como a força dirigente do sistema.
Os militantes não podem diluir a sua cidadania em prol do interesse particular dos partidos, sob pena de desvio democrático, incompatível à pertença ao Estado de Direito Democrático. Os militantes querem-se nos Partidos mas não pretendem perder a sua cidadania e sua capacidade de exercitar a soberania do pensamento no interior dos mesmos.

O populismo não raras vezes afirma-se a esconder o fraco desempenho político das lideranças populistas e estas, por sua vez, se assumem como factores de crispação no interior das forças políticas. Engendram o dirigismo, o culto de personalidade e as idolatrias. Lembrei-me agora do texto “Pensar para melhor agir”, de Amílcar Cabral, aquando do Seminário de Quadros do PAIGC, em 1969, em que este afirmava “No Partido, na verdade, só entra gente honesta, séria, e sai todo aquele que é desonesto, todos aqueles que se aproveitam do nosso Partido para servir os seus interesses pessoais”. Creio ser ainda válida esta tese de Cabral e para o conjunto das forças políticas cabo-Verdianas.

Além do mais, os partidos, na governação ou na oposição, têm de estar em conformidade às leis da República e esta é a condição mínima da existência dos mesmos num Estado de Direito Democrático.

Na mensagem de Ano Novo aos portugueses, o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa reafirmou que “o populismo está à distância de um discurso demagógico”. Subscrevendo tais palavras, direi que esse discurso pode vir como lógicas cartesianas, argumentos fáceis e palavras simples, recusando toda e qualquer reflexão, toda e qualquer complexidade. Veja-se, a título de exemplo, as tentações persecutórias a militantes e a férrea diabolização da crítica e da reflexão, projetada por uma ou outra direção política de partidos em
Cabo Verde, tentações anacrônicas e absolutamente desajustadas às dinâmicas democráticas modernas. Também recentemente, numa audiência dada à Associação dos Jornalistas de Cabo Verde, o presidente cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca chamaria à colação o reforço do papel da comunicação social na democracia, bem como o contributo que os meios de comunicação social privados podem também dar para a qualificação da democracia, contrariando algum sinal populista a “menorizar” a imprensa privada, livre e independente em Cabo Verde, país ainda com excelente folha de serviço em matéria da Liberdade de Imprensa.

Pode o populismo ganhar espaço em Cabo Verde? O que aparentemente está distante ou nos parece improvável não significa que seja impossível. O nosso sistema político, aparentemente estável e recomendável, não está imune às tentações do populismo, do dirigismo, do arrivismo e da demagogia, assim como das distorções informacionais, fenómenos que aparecem nas entremeadas das circunstâncias sociais e políticas. Se não se fizer um firme combate, o populismo a dar sinais, instala-se e pode encontrar um campo fértil em face de uma sociedade civil amorfa, apática e acrítica.
Na linha do livro de Francisco Pinto Balsemão e José Maria Neves, pode-se inferir pela necessidade de repensar os partidos políticos, a governação e a sociedade, interpondo como valências ao populismo, a democracia de uma visão plural, diversa e crítica, de orientação alternativa dos cidadãos e desta forma oxigenar permanentemente o sistema democrático.

O populismo move-se numa dicotomia interesseira. Ao mesmo tempo que persiste na lógica autoritária da governação dos partidos, condena a voz crítica, conspurca o contraditório e exacerba a legitimidade eleitoral que é concebida como um cheque em branco para impor regras e afugentar alternativas. A reflexão é olhada de esguelha e ela é entendida como uma iniciativa subversiva ou uma força de bloqueio e é usada para colocar os militantes uns contra os outros a perverter todo o sistema político e um travão na consolidação do nosso sistema político.

Não faltam nos dois principais partidos cabo-verdianos, apesar das suas diferenças ideológicas, preocupantes sinais de fúria em relação aos adversários e de perseguição dos seus próprios militantes, atingindo nalguns casos os direitos fundamentais dos cidadãos. Torna-se, pois, imperativo um esforço cívico em contrário. Um esforço de resistência e da crítica, em prol dos fundamentais do nosso sistema constitucional.
Parece-me evidente que a chegada à liderança dos partidos políticos em Cabo Verde de personalidades que, por desconhecerem em profundidade o nosso sistema constitucional, por imaturidade ou notoriedade políticas, constituem
um perigo permanente e à solta e a requerer vigilância apertada e combate político.
Um esforço que nos permita um futuro a construir.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Júlio Correia,16 jan 2019 6:11

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 jan 2019 14:14

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