O Espectro do populismo

PorHumberto Cardoso, Director,4 fev 2019 6:59

​Ninguém já duvida que o panorama político mundial está a alterar-se. Mudanças acontecem por todo lado, mas nas democracias notam-se melhor porque são mais visíveis e têm maior impacto.

 O mundo olha fascinado e ao mesmo tempo apreensivo para o que se passa nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França. Também em outros países como Itália, Hungria e o Brasil, cada um à sua maneira, a dinâmica de certas forças postas em movimento aumenta as incertezas do mundo actual. O mesmo se verifica na Espanha onde há muito muito dividiram o espaço político que anteriormente era dominado por duas forças políticas e em Portugal, onde recentemente no caso do Bairro da Jamaica deram sinais de estar a emergir. Cabo Verde não fica fora desse “filme” que está a desenrolar-se aos olhos de todos. As últimas manifestações de jovens em vários municípios da ilha de Santiago e anteriormente dos Sokols em S. Vicente sugere que algo está a mover-se. E se o que se passa noutras partes sinaliza o que pode vir a acontecer aqui é bom que os actores políticos e a sociedade se acautelem em relação às consequências de certas derivas.

De facto, não se pode pensar que Cabo Verde esteja “blindado” contra esses fenómenos. Há quase 30 anos, em 1989, não ficou imune aos efeitos da derrocada dos países comunistas na Europa de Leste e dos partidos de inspiração leninista no resto do mundo. Depois da visita a 26 de Janeiro de 1990 do papa polaco João Paulo II que tanto contribuiu para essa derrocada também o país se pôs em movimento. Menos de um ano depois terminou o regime do partido único e os caboverdianos viram-se em Liberdade e na Democracia. Se agora está-se perante ao que alguns estudiosos chamam de recessão da democracia não é de estranhar que os seus efeitos perniciosos tarde ou cedo se façam sentir. É, por exemplo, de esperar que também aqui se manifeste a tendência notada lá fora da perda de influência dos grandes partidos, do reforço de forças extremistas e do descrédito das instituições. Ou então que aumente a polarização social e política em detrimento do pluralismo, que o diálogo seja substituído por manifestações de indignação e de ressentimentos e que a tolerância ceda lugar a sentimentos de exclusão por razões políticas e outras. Aliás, tudo isso de uma forma ou outra já está presente. Falta é aparecer novos actores, novas forças políticas e novas formas de agir e participar na esfera pública. Mas sente-se que isso também já está na forja e que é uma questão de tempo e de oportunidade para darem sinal da sua graça. As três eleições, uma atrás da outra que se vão realizar em 2020 e 2021 poderão vir a ser esse momento.

Vários factores contribuíram para a actual recessão democrática nas democracias europeias e norte-americana. Destacam-se entre eles a crise económica financeira de 2007/2008, os efeitos da globalização no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade social e a percepção de que os governos nacionais se mostram quase impotentes aos ditames de instituições supra nacionais e ao poder económico e financeiro das multinacionais. Sobre essa base de descontentamento acenderam-se paixões de base nacionalista e xenófoba recorrendo ao fenómeno das migrações, ao relativo insucesso das políticas do multiculturalismo e às ameaças do terrorismo. Daí foi um passo para que o medo, a indignação e o ressentimento instigados passassem a ser os propulsores utilizados por demagogos e populistas para se instalarem na esfera pública e em vários casos a ganhar eleições, a ocupar o espaço dos grandes partidos e a constituírem-se em verdadeiras alternativas de governação. Muitos eleitores por não se sentirem representados nos partidos tradicionais e por falta de confiança nos seus governos optaram por apoiar extremistas e demagogos seduzidos pelas promessas de soluções fáceis e rápidas para problemas complexos do país e da sociedade.

No caso de países como Cabo Verde o desencanto com a democracia pode também vir do facto de os cidadãos e eleitores não se reverem nos partidos do arco da governação. Tendem a manter um estado de permanente crispação política impedindo o debate e dificultando muitas vezes que iniciativas positivas sejam tentadas ou continuadas. No mesmo sentido vai a adopção generalizada pelos poderes eleitos de um modus operandi em que se está em campanha permanente e em que se submete-se as pessoas a múltiplas visitas e auscultações que depois não são seguidas de resultados imediatos. Acresce-se a isso o recurso sistemático no discurso político a figuras de vitimização, de descriminação e abandono para justificar a situação das pessoas. Com isso reproduzem-se relações de dependência na relação entre o político e o eleitor/cidadão que deixa as pessoas susceptível a demagogos e populistas, precisamente porque é uma relação que só faz crescer frustração e ressentimento.

Também não ajuda que políticas apresentadas como estratégicas para o país como a educação e formação, regionalização e inserção na economia mundial com o turismo, investimento directo estrangeiro e exportações depois não recebam tratamento prioritário em recursos, atenção de governantes e disponibilidade da administração pública e seus agentes. Quem disso se queixa são principalmente os jovens que ressentem-se da qualidade do ensino, essencial para a produtividade e competitividade do país, sacrificada pela opção em massificar até o ensino universitário. São os mesmos que não vêm a economia a criar postos de trabalho em número e qualidade porque os governantes não conseguem focar-se na atracção de investimento externo que, como mostram os dados recentes do INE, permitem ao país exportar, fazer do turismo o motor da economia e empregar milhares de pessoas. Ainda são os mesmos que ficam perplexos quando vêm o Cardeal Dom Arlindo Furtado expor com simplicidade as fragilidades óbvias da política de regionalização que tanta atenção tem requerido do governo nos últimos anos.

A verdade é que a situação actual do país em que já não é mais possível manter-se o modelo da reciclagem de ajudas externas, em que a dívida pública também já não permite que se contraia grandes créditos para investimentos públicos e em que a economia ainda não cresce o suficiente para as pessoas verem o futuro com algum optimismo pode vir a revelar-se perigosa. Há que encontrar uma saída e há que preparar o país e a suas gentes para o enorme desafio que é o desenvolvimento sob pena de, num futuro próximo, as populações virem a ser seduzidas por algum demagogo ou populista. E a tragédia da Venezuela está aí para relembrar o que invariavelmente resulta dos exercícios de populismo, quando os povos se deixam tentar por caminhos pretensamente fáceis.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,4 fev 2019 6:59

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  4 fev 2019 6:59

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