No conto “Muminha vai para a escola”, publicado em abril de 1952 no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, Baltasar Lopes reconstituiu a história do Seminário-Liceu, vivenciada por três personagens-alunos: ele próprio, o narrador; Francisco, a quem a “meninência” chamava “Muminha” e Zé Coimbra “que fazia trinta por uma linha”.
Factos
Em 3 de setembro de 1866 foi criado o Seminário Eclesiástico da diocese de Cabo Verde, na vila da Ribeira Brava, ilha de S. Nicolau. Era um seminário, mas também um liceu, pois que nas suas aulas, os jovens, que não se destinavam ao estado eclesiástico, recebiam uma educação literária e científica que os habilitava a seguir estudos superiores. Foi extinto em 1917.1
O Seminário admitia alunos internos e externos, não devendo os internos “ter relações com os alunos externos sem prévia licença; sendo-lhes formalmente proibido receber deles ou passar-lhes diretamente livros, cartas ou quaisquer outros objetos”2. Na opinião do vice-reitor Francisco Ferreira da Silva, os externos aproveitavam menos, enquanto os internos, podiam equiparar-se aos estudantes dos institutos do reino. Os professores, de preferência clérigos, ministravam instrução aos discípulos, desenvolvendo-lhes a inteligência e ensinando-os “a pensar, a distinguir e a refletir”.3
Baltasar Lopes entrou para o Seminário-Liceu em 1916 como aluno externo.
Ficção4
No conto de Baltasar Lopes, a personagem principal é Francisco, aluno interno, uma figurinha de menino-de-almanaque, sua cor sem préstimo de feijão crescido ao pé de pote de água, menino bem-comportado nem sequer tinha assaltado as hortas do Seminário para fazer piqueniques clandestinos de mangas e goiabas. Como confessa o colega-narrador, era constantemente motivo do nosso ódio ou do nosso desprezo («Menino-fêmea» – escarrava, enjoado, o Cesário). Vítima de agressões – diríamos hoje bulliyng– foi estigmatizado com a alcunha Muminha, devido ao aspecto macilento, portanto, cadáver, portanto, múmia. Na realidade, como se desvenda no fim da narrativa, era um menino doente, sofria de ataques epiléticos desde a primeira infância.
Baltasar e Zé Coimbra eram alunos externos. Essa condição não os impedia de tomarem a sério os deveres de estudantes: Debaixo da nossa epiderme havia, sem dúvida, muita tropelia, muita torpeza, muita bulha, perversidades, fugidas de casa; mas, satisfeitas essas necessidades de agitação que nos punham o demónio no corpo, a prenda5 (como então se dizia) era uma balisa muito aceitável como objectivo e forma de nobilitação.”
A trama da narrativa é tecida pela ação pedagógica e disciplinar dos mestres: o cónego Bouças (nunca nomeado, mas omnipresente), um homem de quem não podíamos troçar (que possuía uma qualidade rara: era capaz de se entusiasmar e, o que é mais, de transmitir aos outros o seu entusiasmo; o cónego Silva, na aula de Latinidade (…) assanhado com hesitações do aluno no exame de métrica de uma ode asclepiadeia maior e o dr. Colaço, médico na ilha, o único laico do corpo docente do Seminário, que assistiu Muminha quando desmaiou.
Pela memória de Baltasar, entramos numa aula de História que, pelo estilo do mestre, contrastava com as habituais aulas sentadas:
Recordo uma aula em que ele nos falava no 9 de Abril e de como os alemães vinham com grande poderio de homens e artilharia (…). A certa altura, ele que já era velho, de cabeça toda branca, levantou-se no estrado (coisa rara e pormenor que me ficou, porque os cónegos do Seminário, passavam o tempo todo da lição sentados na cátedra) e afiançou-os que, se tivesse estado lá, se não fosse com tiro era com a coronha da espingarda, se não fosse com a coronha da espingarda, era com a mão, com os dentes com que o que o diabo quisesse. Foi um momento emocionadíssimo na aula.
De novo numa sala de aula, assistimos a uma sabatina6 entre Muminha e Zé Coimbra. Foi o diabo cá fora, à saída da aula, os internos queriam impor o prestígio da sua batina7 – e eram a favor de Muminha; nós, os externos, claro, sustentávamos e brigávamos pela metonímia do Zé Coimbra.
A competição – meninos abastados, meninos pobres –, confessa Baltasar, resultava do facto de não perdoarmos ao nosso camarada aquele sequestramento da vida que o cercava [cuidados de uma família endinheirada], simbolizado na posse do compêndio de Desenho, de Marques Leitão, tão invejado por nós todos, porque o livro tinha uma bela capa verde, com as letras de identificação, todas a branco e vinha diretamente de Lisboa.
Capa do livro de Desenho, 1910
Em seis magníficas páginas o autor desvenda a escola que frequentou – como se de um filme se tratasse – os colegas de estudo e brincadeiras, os cânones subvertidos, a crueldade infantil, a generosidade, a eloquência e a arte de ensinar dos mestres, os espaços consentidos e interditos, que inevitavelmente conduziam a um exercício em que todos éramos peritos, de tirar tamarindos com pedradas às ramas do tamarindeiro grande do portão do Seminário.
Obs.: O artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, com exceção do texto citado que mantem a grafia original.
1 Lei de 3 de setembro de 1866; Lei n.º 701, de 13 de junho de 1917.
2 Instruções e disposições regulamentares do Seminário-Liceu de Cabo Verde, de 14 de setembro de 1892.
3 Francisco Ferreira da Silva (1891). Apreciações seguidas de uma alocução pronunciada no Seminário-Liceu no dia da abertura das aulas. Coimbra: Imprensa Académica
4 As citações do conto de Baltasar Lopes são registadas em itálico.
5 Habilitação, competência.
6 Competição entre alunos na sala de aula sobre uma matéria dada.
7 Os alunos internos vestiam batina preta.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.