Ao longe
Na distância da manhã por vir,
Na indecisão das camuflagens
E do rumor da guerra,
Há agonias esbatidas no negro-fumo
Da pólvora,
Dos homens que se batem.
Áquem, é a luta na retaguarda!
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Há a guerra dos nervos destrambelhados:
A guerra que ficou em nós
Das notícias de guerra!
E há noites incalmas
de almas
que escrevem poemas
aos poemas dos nossos nervos em guerra.
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– Guilherme Rocheteau, “Panorama”
in Certeza n.º 1, Março.1944
Academia Cultivar
No contexto conturbado da Segunda Guerra Mundial surgiu um grupo de alunos dos últimos anos do ensino secundário que frequentavam o Liceu Gil Eanes, em São Vicente, que decidiu criar, em 1942, a “Academia Cultivar”.
Nas suas reuniões semanais, segundo Arnaldo França, os membros da Academia apresentavam trabalhos de sua autoria, nem sempre de âmbito literário, que eram discutidos em grupo. Os novos membros só eram admitidos depois de terem apresentado oralmente um trabalho pessoal para apreciação do grupo.
Amílcar Cabral chegou a solicitar a sua entrada para a Academia Cultivar, tendo feito a apresentação de um conto, mas foi preterido, segundo Arnaldo França, por ter sido considerado “literariamente atrasado” em relação aos demais do grupo.
Eram membros da Academia: Eduíno Brito Silva (São Vicente, n. 1923) José Mateus Spencer (São Nicolau, n. 1923), Guilherme dos Reis Rocheteau (Santo Antão, n. 1924), Nuno Álvares de Miranda (São Vicente, n. 1924), Orlanda Amarílis Rodrigues, (Santiago, n. 1924), Arnaldo de Vasconcelos França (Santiago, n. 1925) e Tomás Dantas Martins (Santo Antão, n. 1926), elementos que viriam a constituir o corpo redactorial da folha literária da Academia, para além de António José Firmino (S. Nicolau, n. 1924) e José Martins da Fonseca (Santiago, n. 1924).
Fôlha da Academia
Em 1944, os membros da Academia com mais vocação literária decidiram criar uma folha, tendo surgido a Certeza – Fôlha da Academia, com o propósito de ser um marco – “uma lápide que contará tudo aquilo que nos animou na aleluia deslumbrante dos nossos dezoito anos...”.
Sendo estudantes e sem disponibilidade financeira para custear as despesas da publicação de uma revista, os jovens da Certeza lançaram mão do expediente de realizar recitais, seguidos de baile, com venda de bilhetes, para recolha dos fundos necessários.
Encontrando-se em São Vicente o corpo de militares expedicionários, ávidos de diversão, estes tornaram-se nos principais frequentadores de tais saraus.
A vinte anos de distância, Arnaldo França (1962) recordou assim o aparecimento da Fôlha da Academia:
“Pela mão do escritor Manuel Ferreira, no tempo expedicionário em São Vicente, os escritores neo-realistas portugueses chegaram até nós com a força da sua mensagem – mensagem é uma palavra característica desses tempos heróicos.
Como me lembra ainda as leituras, em sistema de empréstimo, dos romances de Redol, da Aldeia Nova, de Manuel da Fonseca, dos números de já ao tempo extintos “Diabo” e “Sol Nascente”! A Planície, de Manuel Fonseca, e os Poemas de Mário Dionísio corriam de mão em mão em cópia manuscrita. E a célebre polémica sobre o neo-realismo que, na altura, opôs Mário Dionísio a João Pedro de Andrade? Mas tudo isto, e com certa mágoa o digo, só na epiderme arranhou a geração do meu tempo. Faltava-nos é certo a experiência que a idade dá e a cultura que só o tempo possibilita. Éramos ainda terreno virgem acabado de formar. Faltavam-nos camadas sedimentares”.
De facto, o Movimento Neo-realista Português esteve associado à resistência antifascista dos finais da década de 1930. Colocava-se a nova tendência literária contra o “descompromisso” do movimento anterior, o Presencismo, e defendia uma literatura “engajada”, voltada para os problemas concretos do país.
Arnaldo França esteve ciente que “a influência neo-realista foi de molde, pelo seu cunho universal, a desenraizar um pouco os poetas ilhéus do chão que pisavam”.
Para Manuel Lopes, os novos que se agruparam à volta da Certeza eram claristas: “tentaram experimentar um processo marginal perfeitamente viável inspirado na tendência social do neo-realismo português, acabando por regressar à família claridosa, cumprida a experiência” (1959).
Certeza n.º 1, Março.1944
Número inaugural onde se define a identidade da Academia Cultivar e o seu propósito:
Dez ilhas. Dez…
E o mar a namorar-lhes as praias que não são
San Sabastian, Carlton ou Palm-Beach.
Tantas
quantos
os dedos compridos das mãos.
Dez ilhas. Dez…
De praias lambidas pelo sol sensual.
Dez ilhas...
Dez mandamentos…
Atentas vigías no mar…
Certeza n.º 2, Junho.1944
A página do rosto traz o poema “Mamãi”, considerado como “o ideário colectivo do grupo”:
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– Mamãi!
sonho que, um dia,
estas leiras de terra que se estendem,
quer sejam Mato Engenho, Dacabalaio ou Santana,
filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor,
serão nossas.
E, então,
o barulho das máquinas cortando,
águas correndo por levadas enormes,
plantas a apontar,
trapiches pilando,
cheiro de melaço estonteando, quente,
novas seivas brotando da terra dura e seca,
vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida!...
Certeza n.º 3, Janeiro.1945
Número proibido pela Censura retido na tipografia Minerva de Cabo Verde, na Praia. Um exemplar foi entregue clandestinamente a Arnaldo França, que o preservou tendo-mo cedido em 2012 para digitalizar, ficando uma cópia no Arquivo Histórico Nacional.
Na página do rosto, o “Poema de Jorge Barbosa”, poeta da Claridade, sintonizado com o seu tempo e que a colocar o seu sinete de aprovação à essa geração mais nova.
O Poeta clamou pela Paz
para que os aviões não deitassem bombas sobre as cidades
e os canhões não se ouvissem
e não houvesse derrocada de lares
e barcos afundados.
Ninguém fez caso e todos concordaram
que o Poeta era um visionário.
75 anos depois, o Expresso das Ilhas vai reeditar e distribuir com o último jornal do mês de Março os três números da Certeza – Fôlha da Academia.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.