Quando faltam cerca de vinte meses para o fim da concessão, pareceu-me útil e eventualmente necessário contribuir para um olhar crítico retrospetivo do percurso feito, em jeito de balanço, numa perspetiva de retirar lições para o futuro.
Resenha histórica
Para um avivar de memória é imprescindível uma breve resenha histórica.
Em 1995, a então Empresa Pública dos Correios e Telecomunicações foi transformada em duas sociedades anónimas com capitais exclusivamente públicos: Correios de Cabo Verde SARL, e Cabo Verde Telecom SARL.
Oficialmente criado em dezembro de 1995, a CV Telecom possui um Capital social de mil milhões de escudos. Em junho desse mesmo ano, é aprovada a privatização de 65% do capital social da CV Telecom. Foi constituído um bloco indivisível e inalienável de 400.000 ações correspondentes a 40% do capital social, reservado a um parceiro estratégico. Os restantes 25% para oferta pública de subscrições.
Este bloco de ações de tipo A foi colocado à venda através de um concurso público de que saiu vencedor a Portugal Telecom S.A. que, por conseguinte, viria a assinar com o Estado de Cabo Verde um contrato de compra e venda de ações. Este contrato incluía os compromissos de celebração de um contrato assistência técnica à CVT e de celebração de um contrato de concessão com o Estado de Cabo Verde.
Assim, os principais instrumentos jurídicos e institucionais consagrados neste processo foram: o contrato de compra e venda, o contrato de concessão, o acordo parassocial e o contrato de assistência técnica.
Em 2005, nove anos após a fixação do contrato de concessão, o Estado cria as condições legais e institucionais para a liberalização do mercado das telecomunicações e para a instalação de uma entidade reguladora.
O entendimento parassocial
Paralelamente ao contrato de compra e venda, a Portugal Telecom impôs e garantiu, através de um protocolo de intenções assinado com o Estado de Cabo Verde, todas as condições que viriam a determinar o seu controlo absoluto da CV Telecom.
Logo após a compra das ações, essas condições foram vertidas num acordo parassocial que faz uso das normas estatutárias da Sociedade e define/bloqueia, à cabeça, as regras de escolha dos órgãos sociais da empresa e outras regras de relacionamento entre o acionista PT e o Estado de Cabo Verde. Foi assim atribuído à Portugal Telecom uma fictícia maioria acionista quando, na realidade, ela detinha somente 40% da empresa.
No fundo o acordo determinava que, em todas as decisões estratégicas para a empresa, o acionista Estado (por via direta e indireta) devia estar alinhado com o acionista PT.
Os eixos principais e o percurso da concessão
O objeto central e diferenciador da concessão consiste no estabelecimento, gestão e exploração, em regime exclusivo, das infraestruturas que constituem a rede básica de telecomunicações. Foram igualmente concessionados os então serviços fundamentais de telecomunicações, como, por exemplo, os de telefone fixo e de telex.
Pela concessão, ficou a Concessionaria obrigada a pagar anualmente ao Estado, a título de renda, o valor correspondente a 4% da totalidade da receita líquida da exploração das infraestruturas e dos serviços objeto da concessão.
O texto da concessão estabelece todas as obrigações gerais e específicas da concessionária, nomeadamente as relacionadas com a gestão e fiscalização da mesma por parte das entidades competentes bem como os direitos e responsabilidades das partes.
Nove anos após a concessão, o Estado de Cabo Verde percebeu que, com a globalização e eventual harmonização de mercado e com o desenvolvimento rápido das tecnologias, tornava-se necessário proceder à liberalização global de todos os serviços e infraestruturas das comunicações e de informação.
Na verdade, a concessão veio a revelar-se, em si mesma, uma medida de política incontornável e acertada, na medida em que os substanciais custos de implantação dessas infraestruturas e as economias de escala entre os serviços habilitados na plataforma sugerem que é económica e financeiramente sensato para Cabo Verde lançar e manter apenas uma rede nacional de infraestruturas básicas. Essa é, aliás, uma medida que tem feito eco no Grupo de Reguladores Europeus (ERG) sobre as tecnologias NGA (acesso de próxima geração).
Contudo, o modelo da concessão e de exploração dessas infraestruturas, em regime exclusivo, não permitindo que eventuais outros operadores a elas também tivessem acesso, em igualdade de circunstâncias, para a prestação de serviços de telecomunicações, cedo se revelou um fator inibidor para o desenvolvimento do setor, limitador da inovação e penalizante para os consumidores.
Aliás, a concessão tinha também como objeto a exploração de serviços fundamentais de telecomunicações em regime de exclusivo, ou de monopólio, o que, por si, bloqueava, de raiz, qualquer iniciativa que não fosse da concessionária.
A instauração de um regime de monopólio no setor das comunicações em Cabo Verde aconteceu exatamente no momento em que, a nível mundial, se caminhava a passos largos no sentido da plena liberalização, inclusive em Portugal onde, em Janeiro de 2000, já se podia escolher entre vários prestadores do serviço fixo de telefone.
Com efeito, ao abrigo do Tratado da União Europeia (artigo 86º), o processo de liberalização da prestação de serviços e exploração de redes de telecomunicações, em Portugal, terminou no ano 2000. A partir desta data, a entrada no mercado ficou sujeita a procedimento de licença ou de autorização, de acordo com princípios de não discriminação, proporcionalidade e transparência. O consumidor final começou a comemorar o sucesso da liberalização, com a redução do custo unitário das telecomunicações.
A Portugal Telecom encerrava, assim, em Portugal, o seu percurso como um operador único nacional de telecomunicações para, em plena era de liberalização do setor, promover em Cabo Verde um novo monopólio.
Percurso técnico e assistência técnica
O contrato de assistência técnica resulta de uma condição e de um compromisso embutidos no contrato de compra e venda e tinha como objeto a assistência técnica e de gestão da Portugal Telecom à CV Telecom.
Para os serviços a prestar/prestados, o contrato determina uma remuneração fixa de 2,5% do valor da totalidade da receita líquida da exploração de serviços, independentemente do volume e/ou da qualidade dos serviços. Tal remuneração não cobria intervenções e serviços diretos ou indiretos tais como: serviços laboratoriais, competências específicas, consultoria, ações de formação técnica e de gestão e assessoria técnica em pedidos de financiamento.
O contrato estipula que esses serviços seriam remunerados conforme os preços praticados pelo Grupo PT. Assim, a CVT suportava ainda todos os encargos relativos a esses serviços: logística, transporte aéreo em classe executiva, transporte local e honorários.
Não obstante, Cabo Verde manteve sempre um atraso de uma geração tecnológica em relação a Portugal e à Europa. Por exemplo, em 2004, quando foi lançado, em Cabo Verde, o concurso público para a atribuição de licenças para prestação do Serviço Móvel Terrestre (SMT), a PT inaugurava, em Portugal, a terceira geração móvel.
Agora, em 2019, decorre o processo de implementação da rede móvel de quarta geração quando, em Portugal se está a caminho da quinta geração móvel.
A parceria estratégica – uma falácia?
O termo parceria estratégica, tem sido recorrentemente utilizado em Cabo Verde, de forma inconveniente e inadequada, para significar participação acionista. Isso tem acontecido particularmente quando uma entidade ou empresa estrangeira adquire, por compra, uma determinada quota de ações numa empresa.
Uma parceria estratégica, também chamada de aliança estratégica é, por definição e entendida comumente como um acordo entre duas ou mais entidades para oferecerem suporte mútuo e juntas promoverem ações estratégicas de maneira a que todas tenham benefícios.
Uma vez negociados e fixados os termos básicos, torna-se também necessário chegar a entendimento quanto às métricas para o monitoramento e a avaliação da parceria, para permitir que todos acompanhem o seu progresso e percebam se há obstáculos que devem ser superados. Os resultados devem ser periodicamente revistos para permitir que os ajustes necessários sejam feitos.
Efetivar uma parceria entre empresas é criar um laço de cooperação mútua baseado no chamado “Win-Win”, em que todos os envolvidos têm vantagens. Contudo, a estratégia só funciona bem quando pautada pela transparência e entendida como uma via de mão dupla. Ou seja, em algum momento, uma das empresas poderá ter que abrir mão de algo em prol do ganho da outra. É justamente essa mecânica que consolida as parcerias e promove mais competitividade para todos os envolvidos.
As parcerias entre empresas funcionam quase como um casamento, mas com separação total de bens. Elas precisam ter objetivos comuns a realizar, principalmente, através da cooperação mútua, e devem ser tratadas sempre com ética e transparência.
E, como diversos casamentos, as parcerias também não precisam ser eternas. Elas têm que durar enquanto forem benéficas para as partes envolvidas.
Vale a pena testar a aplicabilidade desses parâmetros definidores de uma parceria estratégica na relação estabelecida com a PT. O estado de Cabo Verde e a PT protocolaram o entendimento de que ao adquirir 40% do capital social da CV Telecom, a Portugal Telecom se convertia no parceiro estratégico selecionado pelo Governo da República de Cabo Verde para liderar o processo de modernização e expansão das telecomunicações do país.
O conceito não consta do Contrato de concessão, nem nos estatutos da CVT. Além disso, a noção de parceiro estratégico tão pouco existe nos textos legais atualmente em vigor. Não tendo sido definido, infere-se que, em termos concretos, se tratou de confiar a gestão efetiva e a concentração das decisões estratégicas à PT e de a consagrar como a única fornecedora da CV Telecom (assistência técnica e outros recursos).
De facto, a PT tornou-se, ao mesmo tempo, acionista da CVT e o seu principal fornecedor. Passou, portanto, a fazer uso da sua qualidade de acionista para se beneficiar de condições mais vantajosas que outros potenciais concorrentes do mercado.
Está-se, assim, perante uma situação em que é designado um parceiro estratégico sem, contudo, haver um acordo de parceria estratégica que defina o quadro win win para cada uma das partes.
As dúvidas sobre essa relação cedo foram dissipadas com as sucessivas alterações introduzidas à titularidade das ações da PT na CVT, contrariando e atropelando os atributos legais estabelecidos para o bloco de ações adquirido, como sejam a indivisibilidade e a inalienabilidade. Logo nos primeiros anos de concessão, alguns dos pressupostos de partida começaram a ganhar novas configurações que não deixaram de ter reflexos ou impactos, em maior ou menor medida, nas relações inicialmente estabelecidas.
A visão e os propósitos da PT não estavam alinhados com as necessidades e os objetivos estratégicos da CVT. Com efeito, em 2007, a PT anuncia uma aventura expansionista com o objetivo de crescimento no continente africano, um novo projeto de telecomunicações em língua portuguesa, uma operadora capaz de atender 200 milhões de pessoas em Portugal, Brasil e África. E a CVT era simplesmente mais um instrumento para essa aventura. A PT fixou como prioridade reorganizar a carteira de ativos e tentar transformar em posições de controlo as participações então detidas, quase todas minoritárias, em empresas como a CVT. E os esforços nesse sentido não foram poucos.
Nesse processo de expansão, a participação da PT na CVT passou, inesperada e surpreendentemente, a ser ativo da operadora brasileira, Oi. Tudo isso sem que o Estado de Cabo Verde tivesse sido sequer informado.
Pode uma relação assim caracterizada ser enquadrada como parceria estratégica?
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 903 de 20 de Março de 2019.