Privatizações: discursos e resultados - o caso da CVTelecom

PorJorge Lopes,3 abr 2019 6:23

Jorge Lopes Consultor Profissional
Jorge Lopes Consultor Profissional

​1. O quadro legal e institucional da liberalização do mercado No momento da privatização e da concessão, o mundo estava perante o início de um novo e determinante paradigma rumo à globalização. A dinâmica da inovação no setor das telecomunicações e das tecnologias de informação e comunicação provocava mudanças rápidas no perfil do desenvolvimento económico e da atividade humana. A Internet, o Telemóvel e a banda larga, que são a chave da mudança de paradigma, não se encontram, de todo, no texto da concessão.

Essas terão sido as razões que motivaram a Declaração de política de comunicações e informação do estado de Cabo Verde (Resolução n.º 13/2005 de 25 de abril) e a publicação do Decreto-legislativo n.º 7/2005, de 24 de novembro. O objetivo central a substituição do modelo de monopólio pelo da concorrência.

Foi instalado um regulador independente face ao poder político e às empresas do setor, e fixada a garantia da separação total e efetiva das funções de regulação das competências ligadas à propriedade.

Foi desencadeado um processo de negociações com a CV Telecom. Este processo, muito conturbado, teve início em 2005 e só em 2016 teve desfecho à vista com as partes a fixarem as linhas de entendimento possível. Isso porque, nessa altura, a PT já não detinha o controlo de gestão da CV Telecom.

A operadora histórica e incumbente, a CV Telecom, durante todo o tempo em que foi gerida e dominada pela Portugal Telecom, seu principal interlocutor, resistiu estoicamente à quebra do monopólio.

2. A regulação – seus efeitos e suas limitações

Os esforços do governo e da reguladora no sentido de realizar todas as iniciativas consequentes da liberalização do mercado das telecomunicações perduram há 14 anos. E é de justiça relevar o papel preponderante da ANAC neste processo.

A ANAC, criada efetivamente, em junho de 2006, acabou por fazer um trabalho relevante no sentido de atenuar os efeitos nefastos do regime monopolista do setor, dentro dos condicionalismos e das limitações existentes. Vale aqui destacar o constrangimento de peso e a maior falha estratégica do Estado de Cabo Verde neste percurso: a instalação de um regime de monopólio privado absolutamente solto no mercado e sem uma competente autoridade reguladora.

Esta autoridade surgiu 10 anos após a instalação do monopólio, quando o mercado das telecomunicações em Cabo Verde já era fortemente caracterizado pelo exercício de poder dominante da operadora histórica e incumbente, o Grupo CVT, conferido pelo controlo absoluto das infraestruturas de telecomunicações, essenciais e não replicáveis.

Ademais, a nascente reguladora, inexperiente, com parcos recursos humanos e financeiros e ténue conhecimento na matéria, lidava com uma CVT escudada e defendida pela Portugal Telecom, pujante no que respeita a recursos financeiros e humanos e com acesso fácil a consultorias internacionais de renome, quando se tratava de defender o monopólio. Isso tornava mais difícil a tarefa de regulação.

Estudos credíveis revelam que, empresas como a CVT, com um longo histórico de integração vertical e que possuem uma estrutura de integração vertical já “calcinada” são irrefutavelmente resistentes ao leque de decisões granulares que visam minimizar as preocupações em matéria de concorrência.

De todo o modo, a atividade reguladora possível e a entrada no mercado de outros operadores constituem fatores determinantes do salto qualitativo verificado no setor, caracterizado por uma baixa significativa de custos de acesso e por uma maior diversidade de serviços.

Todavia, os resultados estão longe de serem satisfatórios. O CONTRATO DE CONCESSÃO AINDA NÃO FOI NEGOCIADO.

1. As lições do processo e do percurso

A criação da CV Telecom a e sua privatização através da alienação de parte considerável do seu capital social foi uma medida positiva e de alcance estratégico. Com efeito, preconizava um desenvolvimento acelerado e de qualidade das telecomunicações, e permitia, por via do modelo de privatização adotado, uma participação acionista diversificada, de natureza individual e entidades/empresas públicas e privadas, nacionais e estrangeiras.

Foram tomadas fortes medidas de proteção do sector, considerado estratégico, nomeadamente mecanismos de resgate do controle da empresa, em última instância e caso necessário, destacando-se:

  • A criação de um bloco indivisível e inalienável de 400.000 ações (40% do capital), a ser disponibilizado a uma empresa estrangeira;
  • A classificação de Golden Share à participação do Estado, conferindo-lhe poderes especiais, mesmo sendo minoritária;
  • O controle da gestão da CV Telecom pela PT foi garantido, concomitantemente, através de um acordo parassocial com as características seguintes:
  • A desvantagem de, praticamente, silenciar o Estado acionista e remeter a gestão da empresa, de forma absoluta, à PT.
  • A vantagem de não ser formal e legalmente vinculativo da vontade das partes em sede de Assembleia Geral, o que fazia dele um instrumento precário para garantir à PT, esse papel de controlo.
  • A PT tinha consciência desta fragilidade do acordo parassocial e é exatamente por isso que insistiu na aquisição de mais ações por forma a atingir os 51%, não tendo o Estado cedido a esta pretensão.

    Ainda assim, acabou por efetivar a venda/transferência da participação que detinha na CVT à empresa brasileira - a Oi, à revelia da própria CVT e do estado.

    Esteve bem o Estado de Cabo Verde ao alienar somente 40% da CVT e ao introduzir o acordo parassocial, um instrumento que veio a permitir, mais tarde, o resgate do controle da empresa, devido ao comportamento inadequado da PT.

    A dependência técnica e tecnológica da PT, bloqueada por um contrato de assistência técnica, foi completamente nocivo para o desenvolvimento tecnológico da empresa e para os interesses do Estado pelas seguintes razões:

  • Constituiu, para a PT, uma considerável e permanente fonte de rendimento. Era a PT quem determinava as necessidades da CVT, fixava o preço dos fornecimentos e os vendia à CV Telecom.
  • Apresentava um conflito de interesses nefasto para a concorrência no sector e foi um canal de drenagem financeira para a PT;
  • Do ponto de vista técnico e operacional, Cabo Verde manteve-se sempre atrasado de uma geração tecnológica em relação a Portugal e à Europa.

    Resulta disso a atual precária capacidade do país em banda larga, apontada como um dos principais constrangimentos ao desenvolvimento das TIC e da economia;

    De fato, nestes moldes, o contrato instaurou e manteve um regime muito vantajoso para a PT enquanto a CVT se viu inibida de aceder a qualquer outro provedor de serviço ou fornecedor equivalentes por um custo menor.

    A concessão dos serviços públicos de telecomunicações, que se seguiu à privatização, foi uma medida de política certa e oportuna. Contudo, o regime de monopólio e o modelo adotados foram prejudiciais para o mercado e para o desenvolvimento do setor.

    A constituição da República estipula que os poderes públicos devem garantir as condições de realização da democracia económica, assegurando, designadamente a igualdade de condições de estabelecimento e de atividade entre os agentes económicos e a sã̃ concorrência. Embora não proíba expressamente o monopólio convencional, este não se compagina com a premissa da concorrência.

    É de admitir a interpretação de ressalva em relação à vedação do monopólio natural. Na verdade, este pode ser visto como algo positivo para o mercado, se entendido como aquele que decorre da impossibilidade física da mesma atividade económica ser realizada por mais de um agente. Tal ocorre na circunstância em que a maximização de resultados e a eficiência de recursos apenas são alcançadas quando a exploração se dá em regime de exclusividade.

    Em Cabo Verde, como a nível global, as infraestruturas de telecomunicações de base e não replicáveis envolvem custos de investimento de tal forma elevados que não há como estabelecer competição na sua gestão e exploração. A sua duplicação é, senão impossível, pelo menos irracional do ponto de vista económico, financeiro e até urbanístico. Por isso, a sua exploração e gestão podem ser caracterizadas como sendo de monopólio natural, o que não impede a pluralidade de prestadores de serviços que necessitam dessa infraestrutura.

    Sobre a concessão feita, é importante fazer as seguintes considerações:

  • A criação ab initio dos mecanismos para coibir os efeitos nefastos que o monopólio natural trouxe para o mercado das telecomunicações cabia ao Estado. A sua efetivação teria favorecido um ambiente competitivo saudável entre os agentes económicos o que, não foi feito;
  • Esta função caberia a uma entidade reguladora que só veio a ser criada dez anos depois, quando já se encontravam irremediável e irreversivelmente instalados todos os malefícios de um monopólio convencional;
  • A concessão, que se devia limitar à exploração de infraestruturas, estendeu-se para outros serviços de telecomunicações, bloqueando a entrada no mercado de outros prestadores de serviços, prejudicando o desenvolvimento do setor e os consumidores;
  • As negociações entre as partes no sentido de reverter a situação foram despoletadas nove anos depois e não tiveram grande sucesso. Por conseguinte, foram tomadas medidas de política, visando a liberalização do setor e que deveriam pôr termo a aspetos mais contundentes do monopólio e incitar à conclusão da negociação do fim da concessão;
  • Uma tímida abertura do mercado ocorreu, consequentemente, sendo este hoje marcado pela presença de um operador histórico que tem muita dificuldade em abrir mão, definitivamente, da sua natureza monopolista e por outros operadores a quererem afirmar-se, mas com num corredor muito estreito de mercado sem qualquer possibilidade de plena realização enquanto durar o status quo;
  • As infraestruturas de telecomunicações de base e não replicáveis que constituem objeto da concessão permanecem sob o domínio público, situação que deve continuar inalterável;
  • A exploração destas infraestruturas deve continuar a ser feita por concessão, mas num modelo diferente do vigente.
  • A dita parceria estratégica foi sempre apresentada como o maior trunfo do processo de privatização. O percurso mostra, no entanto, que ela representou, sobretudo, um excelente negócio para a PT, ficando por identificar o valor acrescentado que terá trazido à CVT e que este não pudesse, por iniciativa própria, ir buscar ao mercado em condições de competitividade e mais vantajosas. Deste balanço resulta, a seguinte caracterização desta relação:
  • A PT tornou-se acionista da CVT (40% do capital) e o Estado de Cabo verde atribuiu-lhe, na ocasião, o título de parceiro estratégico sem que, contudo, tivessem assinado um acordo de parceria estratégica que definisse, clara e objetivamente, o quadro win-win para cada uma das partes;
  • Foi sim, assinado um acordo parassocial que conferia à PT o controlo da gestão da CVT e um contrato de assistência técnica que colocava a PT na posição de fornecedor único da CVT, tanto de serviços técnicos como de outra natureza, como consultoria jurídica, financeira e institucional;
  • As decisões estratégicas da empresa foram confiadas à PT e a CVT viu-se impedida de aceder a outros fornecedores do mercado e a beneficiar de todas as vantagens de fornecimento através de mercado competitivo;
  • A CVT sempre teve pessoal qualificado que, no mínimo, sabia onde ir buscar as competências e escolher os fornecedores que melhor servissem os interesses da empresa e em conformidade com as regras do mercado estipuladas nas leis do país. Contudo, ela foi impedida de fazer isso;
  • Não foi, por isso uma via de mão dupla como é caracterizada uma parceria estratégica. Os benefícios foram claramente definidos e canalizados num só sentido – em direção à Portugal Telecom.
  • 4. Propostas para o futuro

    As lições que se podem retirar dos vinte e três anos e quatro meses do percurso da concessão dos serviços públicos de telecomunicações sugerem que:

  • O escopo das infraestruturas de telecomunicações de base e não replicáveis deve ser redefinido à luz do estado de desenvolvimento tecnológico atual e de forma a absorver as tendências de futuro;
  • As infraestruturas de telecomunicações de base e não replicáveis devem manter-se sob o domínio público;
  • As atividades de exploração e gestão de infraestruturas de base não replicáveis devem ser estruturalmente separadas das de prestação de serviços de telecomunicações e de TIC;
  • Chegado no seu termo, a atual concessão deve ser substituída por uma outra, adaptada ao mercado liberalizado e que tenha como objeto unicamente a exploração das infraestruturas de telecomunicações de base e não replicáveis. O período da concessão deve ser de 15 anos;
  • Deve haver uma nova concessionária com uma configuração legal e institucional que garanta absoluta equidade de acesso às infraestruturas;
  • A estrutura acionista da nova concessionária deve ser aberta à participação das operadoras em presença no mercado e pelo estado;
  • Todos os serviços de telecomunicações devem passar para o regime de licenciamento.
  • Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.
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    Autoria:Jorge Lopes,3 abr 2019 6:23

    Editado porNuno Andrade Ferreira  em  30 dez 2019 23:21

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