Para já, não se estará longe da verdade ao assumir ruído e construção como parte e contra-parte do mesmo processo; ou que a interacção de ambos, em qualquer latitude, não só se assume normal como até pode, sem consequências perceptíveis, exceder limites. Porém, ainda que dum modo geral se possa perceber aceitável, já no caso de Cabo Verde, suas singularidades exigem contenção, uma vez que ruído excessivo, mal direccionado, ou fora dos canais apropriados, tenderá a perturbar a construção inviabilizando convergências de ideias em matérias essenciais, cujo impacto é fundamental à robustez dos pilares básicos da construção.
Facto é que, muitas vezes, nos cobramos da atitude que nem sempre parece a mais adequada face aos grandes desafios que se colocam com consequências que não se pode negligenciar. É um facto. Basta um olhar retrospectivo para esse percurso, para então se ter a percepção que a atitude muitas vezes não se ajusta à magnitude e ao contexto de grande complexidade e exigência como se coloca a luta pelo desenvolvimento. Poderão ser muitas as causas, mas a impressão com que se fica, olhando para toda essa experiência de décadas, é que, dum modo geral, as novas gerações entram para o processo com desconhecimento quase total dos terríveis contratempos outrora vividos – por certo devido a silêncio cúmplice –, e do futuro que se almeja alcançar já sem boas perspectivas, simplesmente por não se basear em desenho claro e adequado. É assim com a atitude que vai influenciar o andamento da própria construção, que, pela sua importância, põe-se a analisar.
Para começar, uma questão de história: será que se está a focar convenientemente o rasto da história para que no ajustamento dos meandros de suas várias etapas se possa possuir de uma montagem completa e objectiva para se fazer perceber e respeitar aos olhos do mundo, e de modo a reflectir positivamente no processo da construção do futuro? Ou não se estará a cometer o pecado de desbaratar o sacrossanto do capital precioso de cariz identitário, o drama da fome recorrentemente vivido ao longo de séculos no subterrâneo da história destas ilhas, aos muitos milhares ceifando vidas, e que em vez de se assumir fonte de aprendizagem e arma de combate para resgate do gérmen das atitudes perdidas, que tanta falta faz ao processo, simplesmente é relegado à opacidade do breu dos tempos para as coisas se complicarem e continuarem envoltas em sombra? A resposta é não para a primeira questão, uma vez que o foco não está dando cobertura completa a essa matéria; mas já é sim para a segunda, simplesmente por que se amputa o capítulo básico do período colonial. E por que não é sem consequência, importa que se diga: assumir a saga dos objectivos da construção do futuro nunca será comparável a trem para onde se entra só com o indicativo do ponto de chegada. É que, neste, pode-se ignorar o ponto de partida, mas naquele, o que é mais importante é donde se vem, a história donde se parte, a fonte que fornece os ingredientes necessários para se acautelar dos atropelos da caminhada e se alcance o ponto de chegada. Então é fundamental que se criem condições e tenham as novas gerações pleno conhecimento da sua história, consequentemente, atitude consentânea com as exigências da construção do futuro.
Seja como for, há tímidos sinais de que essa cautela esteve a presidir logo nos primeiros anos da libertação do fardo colonial, o mundo a se disponibilizar para a ajuda alimentar e a reacção a ser esta: «ajuda sim, por que bem-vinda, mas em vez de forma directa e mãos estendidas, mãos no trabalho duro, para que da reconversão em bem monetário se invista em infra-estruturas, já que sua inexistência é causa da dura situação de miséria vivida nestas ilhas». Então, nada de mais sábio: dum lado, dignidade e face salva da parte receptora; doutro, lado do doador, surpreendente constatação do desejo de foco na infra-estruturação, pois assim procedendo e havendo trabalho, do estômago havia de cuidar o povo. Isso por que na pós-libertação já só faria sentido o foco na bandeira do trabalho, para que o país, falho de infra-estruturas, pudesse alcançar meios para os investimentos necessários, forma também de matar de raiz ressurgências de velhos fantasmas e normalizar sua posição no xadrez da competição para o desenvolvimento. O que já faz colocar esta outra questão, se ao afastar daqueles tempos, estará a caminhada a fazer-se com as devidas cautelas. A resposta vem da reacção aos dois últimos anos de seca que mostra que o fantasma continua à espreita, não obstante os muitos e muitos investimentos feitos nestas décadas. O que faz, mais uma vez, chamar a atenção para esta via de solução: mudança radical no território dos investimentos, forma de afastar o fantasma da base onde sempre imperou para ditar dramas.
Na verdade, olhando para a trajectória percorrida desde o zero deste novo capítulo da história até hoje, não obstante considerar-se, no geral, positivo e até admirável o trabalho feito que já permite sonhar – e mesmo sonhar alto –, atenção especial exige a base territorial, palco tradicional dos episódios de sobrevivência, uma vez que já se percebe sinais de fragilidade das ilhas periféricas de pendor agrícola que vêm aconselhar a contenção das expectativas e fuga em frente. Sinais devidos ao facto de os investimentos nessas ilhas nunca terem podido superar os limites territoriais da velha base – já com vasto histórico de incapacidade para produzir além de níveis de subsistência – permitindo desvios crescentes das disponibilidades de água de rega, que é cada vez mais envolvida na densificação e diversificação da carga de objectivos, acabando por produzir declínio cada vez mais preocupante: na capacidade produtiva; na qualidade ambiental; na paisagística; dum modo geral, retrocesso no potencial do ecoturismo já percebido como pilar fundamental para a construção de uma economia sustentável, robusta e competitiva. Deste modo, a curto médio prazo, ganho no social, perda na economia, significando: dinâmica paradoxal; risco de colapso ambiental que só através de uma ampla, radical e criteriosa revisão do ordenamento territorial poderá ter uma solução.
Para ir nesse sentido, já se tarda a traduzir em acção concreta o quadro de intenções relacionado com a «economia azul» que obriga a avançar com um vasto plano de aproveitamento das zonas pertinentes de orla marítima, já para poder dar sustentabilidade ao processo, ao mesmo tempo, previsibilidade e segurança na realização de projectos de futuro tão essenciais para a harmonia e sustentabilidade do desenvolvimento. O que já chama a atenção para o obstáculo que estará a barrar a abertura de uma ampla frente para a realização das infra-estruturas necessárias. Neste particular estará a perfilar-se obstáculo maior o alto índice de endividamento que, quanto mais cresce dificultando acesso aos financiamentos necessários, mais retarda o processo e, obviamente, mais agrava os factores que corroem o estado ambiental daquelas ilhas com todo o peso do impacto na economia e na sustentabilidade de todo o processo. Parece estar-se então perante um sério impasse. Resolvê-lo, no momento, é outra grandíssima questão.
Antes de mais, porém, ainda é necessário fazer algumas observações com recurso aos pergaminhos da história. No complicado mar de obstáculos que é dado o país percorrer para chegar a suas metas de desenvolvimento, talvez erro maior é levá-lo a navegar amputado de parte da sua história, a primeira e longa etapa onde teve de experimentar as mais terríveis provações para que na peneira da sobrevivência ainda restasse povo com capacidade de sonhar – sonhar grande – com altas expectativas de futuro. Grande verdade é que essa primeira etapa, com séculos de percurso, ganha foros de guerra genuína – mesmo que feita à bomba da fome, regulada pela espoleta das secas severas –, só que mais dura e cruel que feita à pólvora e ao fuzil. É que nesta, sabe-se sempre onde e quando carregar os dedos e modo como se defender; saltar fora e não ser apanhado; clamar por corredores generosos e ter como salvar vidas. Mas naquela, não: nem tais corredores com a função de salva-vidas; nem onde nem quando a bomba se explode para queimar a pele e aos milhares apagar vidas. Na verdade, guerra diferente feita em círculo fechado e guardião à porta para o agravo se extremar, para a fuga se bloquear. Simplesmente cruel, brutal, absurda a luta travada naqueles tempos.
A tudo isso acrescenta-se ainda as cumplicidades históricas com as seguintes influências: nos dois lados do atlântico, o surgimento de grandes potências económicas; nas terras agrestes até então virgem da presença humana, a fusão étnica que viria a sedimentar o povo destas ilhas com o pré-predestino de calvário e sobrevivência e toda a carga dramática acabada de descrever. Isso, já permitindo perceber melhor: acabada a utilidade como trampolim para a grande expansão da economia mundial – de «armas e bagagens» os protagonistas zarpando para suas origens –, as ilhas ficam quase que abandonadas à sua sorte, e o que resta, percebendo-se, mais ou menos, na condição de subproduto de todo o processo repercutido à escala global. Mas esse subproduto que se julgava desprezível, até ao ponto da sua preservação não se cuidar – embora sabendo não ser lixo – acabaria, através do filtro do tempo, por vir a surpreender com um povo já capaz de proclamar a sua independência, fazer-se aceitar no concerto das nações, cavalgar os meandros da democracia, incluir-se na categoria de melhores democratas, ocupar espaços nas Nações Unidas, e no Conselho de Segurança onde faz vez da presidência. Perfila-se, além disso, cooperando com os povos no capítulo da segurança, particularmente, na contenção de tráficos ilícitos praticados no mar. Tudo, razão que leva à pergunta: será que neste planeta de uma só lua o cabo-verdiano apenas veio para ser útil a «bons amigos»?
Justiça a bons amigos, de facto, nas actuais geopolíticas globais que baralham as cartas e complicam as coisas, sair do impasse implica a acutilância de dois olhares: para fora, munindo-se das ferramentas históricas para melhor apetrechar o jogador do xadrez da cooperação, e assim ganhar capacidade de barganha; para dentro, nova visão sobre o aproveitamento do território; forma e conteúdo à realidade da economia azul ; e fazer aquilo que é a mais imperiosa das necessidades, a revisão da actual dinâmica no campo que põe em risco todo um património secular feito a ferro e a suor.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.