Ao comparar o sector da Justiça com outros sectores do Estado, identificam-se algumas especificidades que podem explicar as dificuldades em promover reformas e mudanças efetivas. Vejamos: Antes de mais a existência de uma reduzida e mal informada base social de apoio do sector da Justiça. É reduzido o número de cidadãos com conhecimento direto sobre o funcionamento do sistema de Justiça, dificultando a construção de laços de confiança e o alargamento da base social de apoio para as mudanças necessárias. Nos debates públicos de políticas de Justiça é necessário envolver mais os cidadãos, e não apenas os políticos e os meios de comunicação social. Caso contrário, daí poderá resultar um agravamento sério dos riscos de populismo. Igualmente a existência de um fraco investimento e interesse públicos em aperfeiçoar e disponibilizar informação estatística do sector de Justiça não permite reforçar a transparência e a confiança no sistema judicial, de modo a auxiliar a tomada de decisão política e a assegurar um debate público informado.
Não menos importante é a inexistência, no sector da justiça, de sistemas robustos e rigorosos de prestação de contas e de mecanismos de divulgação pública dos resultados da actividade judicial que permitam a avaliação externa da qualidade das decisões e o escrutínio público.
Há que citar também o défice de institucionalização da atividade de investigação científica e a produção de estudos e de informação do impacto das decisões tomadas, mobilizando diferentes áreas de conhecimento.
A necessidade de criar um consenso político específico e estratégico para se alcançar um acordo político parlamentar perante matérias que, na sua essência, são determinantes para a reforma da justiça, face às mutações criminológicas de uma sociedade em mudança, conferindo às reformas uma legitimação política reforçada e aos diplomas em causa uma força política que deve ser levada em consideração nos processos de interpretação a que se sujeitam, é um ponto a considerar.
De frisar que no nosso país não existe um sistema de monitorização e nem o hábito de avaliação permanente das reformas legislativas ao longo das legislaturas onde são implementadas.
Constata-se, também, a necessidade urgente de repensar o sistema funcional de segurança do Estado, os serviços de informação da República, a Polícia Judiciária e o modelo de investigação criminal, no que concerne à sua articulação e funcionamento no país, sem descorar a especialização dos magistrados. Urgente é também a modernização da Polícia Nacional, em termos científicos, técnicos e operacionais modernos.
A par dessas especificidades na relação da Justiça com a sociedade, a morosidade tem dominado a preocupação e atenção dos parlamentares e da sociedade cabo-verdiana.
A lentidão da Justiça é um problema clássico, com causas múltiplas e complexas, profundamente induzida pelo crescimento contínuo da procura de tutela jurisdicional, que não deixa prever soluções fáceis e, seguramente, exige medidas diversas e concertadas.
De relembrar que várias reformas foram efetuadas, enquanto políticas públicas de Justiça, tendo sido o móbil de tais reformas sempre o mesmo: tornar a Justiça mais célere e acessível aos cidadãos, enquanto imperativo Constitucional.
Na sociedade moderna e pós-moderna, o tempo e o espaço comprimem-se, a velocidade da vida social é intensa, incompatível com a tendência estática do Direito. Então perguntamos: como tornar a Justiça mais célere? Que justiça procuramos? E que celeridade almejamos?
O tempo não é um elemento neutro no processo, pois na discussão sobre a problemática da ineficácia da Justiça é possível identificar vários tempos em confronto. Com a globalização, o Direito ganhou novos contornos tornando-se matéria de troca, com repercussões fortes, encurtando assim o tempo da justiça. Mas quando falamos do tempo da Justiça não estamos a falar do tempo idealizado pela sociedade, do tempo do quotidiano, do tempo da realização de um contrato, do tempo do cometimento de um crime, do tempo da vingança, do tempo da exaltação do acontecimento. O tempo do calor da disputa não é, seguramente, o tempo da Justiça.
O agir da Justiça não pode ser em função do peso da impaciência do lesado, da indignação da vítima e dos seus familiares, dos interesses políticos, eleitorais ou por critérios de oportunidade do poder e interesse dos media ou de outros grupos de interesse. A Justiça precisa de inquerir, investigar, recolher provas, apurar factos e respeitar o contraditório, para encontrar a razão e a verdade material, salvaguardando sempre a qualidade, a segurança e a certeza do Direito.
O tempo da Justiça não corresponde a esses tempos, o que não significa dizer que quando actua não terá de ser tempestivo, sob pena de ser ineficaz. A lentidão da Justiça é um dos problemas mais graves dos sistemas judiciais actuais, com elevados custos sociais, políticos e económicos, o que poderá, por um lado, potenciar a criminalidade oculta, proliferar formas alternativas ilegítimas de resolução de conflitos, justiça privada e, por outro lado, criar um mau ambiente de negócios e a desjudicialização, colocando na esfera administrativa, e muitas vezes nas mãos de privados, matérias da exclusiva competência da jurisdição estadual.
A morosidade processual não deve ser confundida com a situação dramática da justiça criminal, quando esta não conseguir encontrar respostas no tempo e no espaço para a criminalidade violenta (homicídios vários, terríveis execuções físicas e desaparecimento de pessoas e mesmo crimes contra chefias e pessoas ligadas ao aparelho do poder). Neste contexto, a estrutura, o funcionamento e a missão da Polícia Judiciária deve ser repensada e reconfigurada, em termos técnicos e científicos, com métodos modernos e especializados quanto ao procedimento e estratégias de investigação criminal. Igualmente os serviços da informação da República e o Conselho de Segurança do Estado devem ser questionados quanto à especialização dos seus efetivos, e ser objeto de um retiro para análise e avaliação da missão antecipante e preventiva dessas instâncias, no contexto de ameaças internas e externas.
O ponto de vista dos diferentes interesses em causa, como o da vítima, o da polícia, o do Ministério Público, o do arguido ou ainda o do tribunal, pode influenciar a definição dos limites do tempo do processo. Compreender a morosidade implica identificar os principais fatores de bloqueio ao normal funcionamento do processo nas várias fases em tramitação, a sua morfologia de tramitação, a sua complexidade, o seu quadro legal e a prática judiciária.
Outra face dramática da justiça criminal, mas já no contexto da morosidade, são as prescrições, traduzindo o confronto do sistema judiciário com o limite do seu não funcionamento, gerando indignação social por deixar impune o autor do crime.
O debate sobre o estado da Justiça em Cabo Verde não deve ser indiferente a esse olhar técnico.
Espero ter contribuído, desta forma, para o debate da cidadania.
Felix Cardoso - Magistrado do Ministério Público,
Mestre em Ciências Jurídico Forenses pela Universidade de Lisboa
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.