A palavra proibida

PorAdriana Carvalho,24 jul 2020 7:54

O governador de Cabo Verde António Alvares Vaz determinou, em circular de 28 de janeiro de 1927, a interdição do uso da expressão crise de fome na documentação oficial e a sua substituição porcrise de produção agrícola.

Em 1933 o decreto n.º 22.469, de 11 de abril, instaurou a censura prévia em Portugal e nas colónias, “em publicações periódicas definidas na lei de imprensa e bem assim em folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social”.

Cumprindo-se os ciclos de fatalidades, em inícios dos anos 40 [guerra na Europa, forças expedicionárias em Cabo Verde] as ilhas foram flageladas por uma crise de produção agrícola que se saldou na morte por inanição de 24.463 pessoas (22,4% da população). Em 1947-48, os registos estatísticos fixaram a mortalidade pela fome em 20.813 pessoas (20,5% da população recenseada).1 Como referiu Arnaldo França, “quem analisar a flutuação demográfica do arquipélago não necessita de muita imaginação para reconstituir todo o drama da «voz da chuva desejada» e da «voz da nossa tragédia sem eco»”2.

Baltazar Lopes, num depoimento publicado na edição fac-similada da Claridade (1986) em celebração do cinquentenário da revista de arte e letras, situa-nos no contexto político que antecedeu a época em análise:

“Logo naqueles terríveis anos trinta, com Mussolini e Hitler berrando pelas Europas e ameaçando este mundo e o outro, com os seus afluentes prontos a imitá-los, tal o Doutor Salazar em Portugal, de que dependíamos politicamente, Salazar e a sua censura implacável, que não deixava passar qualquer vislumbre de autonomia de espírito, precursor, na sua óptica, de uma actuação virada para a independência das colónias; censura que, inclusivamente, não admitia nem tolerava o emprego em público da palavra fome, não fossem os cenáculos internacionais saber que em Cabo Verde havia fome, porque, a haver fome, isto seria um atestado de incapacidade da administração colonial Portuguesa…”

Na imprensa da colónia foi cumprida a proibição da palavra fome? Procurando uma possível resposta, folheei jornais e revistas publicados nos anos quarenta.

1941-1944

O jornalNotícias de Cabo Verde3inicia o editorial intitulado ‘A crise de Cabo Verde’ (25 de fevereiro de 1941) com a seguinte informação: “Continua agravando-se, de mês a mês, de semana a semana, de dia a dia, a situação económica, financeira e alimentícia da população”, e no artigo ‘Fomento de Cabo Verde’ (18 de julho de 1942) esclarece: “Se [a agricultura e a pecuária] escasseiam ou faltam, inteiramente, como tem sucedido nos últimos anos, as privações e o infortúnio assumem aspectos dolorosos e trágicos”.

Nestas e noutras (escassas) notícias da crise de produção agrícola, prudentemente, não foi grafada a palavra fome.

Em 1942, um grupo de estudantes do Liceu Gil Eanes constituiu-se na agremiação literária Academia Cultivar. Dois anos mais tarde, tiveram a ousadia de publicar a Certeza - fôlha da academia, repositório de “uma cultura viva, actual, preciosa, útil e reivindicativa” (Nuno Miranda, junho 1944). Os estudantes abordaram os problemas do quotidiano das ilhas, sem utopias e eufemismos.

“Surge um grupo de prosadores e poetas novos que vem estoirar com as torres de marfim e acabar a separação entre o artista e o povo. (…)

Já não é o sonho côr de rosa dos poetas passados; (…) é qualquer coisa de muito mais elevado e real – É a nossa terra, o sangue da vida humana latejante; são as secas, a miséria da nossa gente morrendo defomepelas curvas das estradas no tempo das estiagens”. (Eduíno Brito, março, 1944).

Os alunos do Liceu de Mindelo resgataram a palavra proibida. Fintaram a censura. Porém não foi fácil ludibriar os zelosos censores (neste caso o administrador do concelho Capitão Mota Carmo). A irreverência da revista literária e a intenção anunciada de levarem a mensagem “ao «menor de entre nós» que, em qualquer parte do mundo, tenha na bôca um grito de revolta” (Arnaldo França, junho 1944), explicam a suspensão do terceiro e último número em janeiro de 1945, resgatado graças ao labor investigativo de Arnaldo França e de Manuel Brito-Semedo (publicado no Expresso das Ilhas, em 27 de março de 2019).

1947-1949

Os não-ditos na imprensa informativa irrompem na escrita criativa disseminada, na época, pela Claridade - revista de arte e letras. No quarto número, em janeiro de 1947, Osvaldo Alcântara perpetua “o modo pedinte de quem quer viver mais um dia” no poema ‘Faminto’. No quinto número (setembro de 1947) Jorge Barbosa confidencia: “Senti a miséria queixar-se ao meu lado, / gente sem nada pedindo um pouco somente / do muito que sobeja nas searas e nos cofres”.

Nesse ano de 1947 o Notícias de Cabo Verde (26 de maio) reproduz na primeira página “o notabilíssimo discurso proferido na Assembleia Nacional [em Lisboa] pelo deputado dr. Adriano Duarte Silva”, sobre “a causa principal da falta e irregularidade das chuvas”:

“[…] A natureza tem-se mostrado cada vez mais avara em chuvas e periodicamente as crises vitimam a sua população, espalhando pelas ilhas a fome e a morte.

Nos momentos agudos, todos se apavoram, improvizam-se medidas que nunca chegam a tempo de evitar alguns milhares de mortos, mas, mal deixam de se ouvir os clamores das vítimas, cessa imediatamente a acção dos dirigentes, para só acordar quando de novo, o especto da fome se avizinha”.

A mudança do estilo jornalístico será responsabilidade da direção do Notícias? Julgo que o ónus da verdade se deve apenas à civilidade e ao desassombro de Adriano Duarte Silva.

O Notícias de Cabo Verde, em julho de 1947, transcreve na primeira página o artigo intitulado ‘Crónica Colonial: a propósito de Cabo Verde’, assinado por Armando Xavier da Fonseca (antes dado à estampa no jornal português O Comércio do Porto). Reproduz-se um excerto:

“Uma fome em Cabo Verde é uma calamidade (…).

As épocas de fome são uma verdadeira tragédia para todos que nelas têm de intervir, para lhe atenuar, até onde seja possível, os irremediáveis efeitos. O governo abre serviços, cria sopas para os indigentes e exerce uma fiscalização sobre os preços dos géneros alimentícios que os socorridos têm de adquirir. Mas ignora quantas propriedades são vendidas para se conseguirem alimentos, quanto ouro se empenha ou se vende por qualquer dinheiro, para alimento de famílias atingidas pelo efeito da fome e quantas hipotecas se fazem em condições mais que leoninas”.

No Arquivo Histórico de Cabo Verde encontrei uma nota confidencial do administrador de S. Vicente (o Cap. Mota Carmo censor da revista Certeza), de 19 de junho de 1947, que não permitiu, em primeira instância, a publicação deste artigo, remetendo a decisão ao Governador.

Curiosamente, o jornal regionalista de Mindelo,em setembro de 1949, num curto texto denominado “O fantasma da fome” regozija-se com “a chuva que volta a cair”.

A chancela «visados pela censura» validou os interditos da imprensa na colónia, sem conseguir tapar toda a verdade que, sub-repticiamente (ato voluntário ou distraído), transparece, de quando em vez, em parágrafos discretos ou em títulos apelativos. A escrita amordaçada foi sendo capturada por jovens poetas e prosadores – alguns estudantes liceais – que “criaram a sua própria linguagem, uma linguagem carregada de imagens, em que as metáforas tinham um papel importante, em que, sem citar directamente os factos e as pessoas, faziam suas críticas e denúncias”4

________________________________________________________________

1 António Carreira (1984). Cabo Verde (Aspectos sociais. Secas e fomes do século XX). Bibl. Ulmeiro, p. 124.

2 Notas sobre poesia e ficção cabo-verdianas (1952). Praia: Centro de Informação e Turismo, p. 17.

3 A atividade jornalística de informação geral estava então centralizada em Mindelo, onde foi publicado o jornal Notícias de Cabo Verde [1931-1962] que, nos anos 40, teve periodicidade irregular.

4 João Nobre de Oliveira (1998). A imprensa cabo-verdiana 1820-1975, p. 415.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020. 

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Autoria:Adriana Carvalho,24 jul 2020 7:54

Editado porAndre Amaral  em  6 mai 2021 23:21

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