“Brexit” e o fim da minha inocência digital

PorJailson Brito Querido,23 mai 2019 12:08

A maioria das pessoas irá lembrar-se do período do “Brexit” como uma fase de incerteza e de caos na política britânica. Para além disso eu lembrar-me-ei do período do “Brexit” como o fim da minha inocência digital.

Fazendo uso das novas tecnologias, o Governo Britânico lançou uma aplicação para Android que permitirá fazer o registo de todos os cidadãos da União Europeia residentes no Reino Unido. A aplicação consegue transformar um simples “smartphone” num leitor de chips de passaportes, algo que me despertou curiosidade. Basta um simples encostar do telemóvel ao passaporte eletrónico que os dados biométricos são lidos, e essa informação é, provavelmente, enviada para uma base de dados. 

De repente, dei por mim a pensar na quantidade de aplicações que todos nós temos nos nossos telemóveis e sobre as informações que cada uma dessas aplicações recolhe sobre nós, aquelas que fornecemos voluntariamente, bem como aquelas que as empresas recolhem sem o nosso conhecimento prévio. O que é feito de toda essa informação? O que é que acontece cada vez que abrimos uma aplicação, entramos num site ou pomos um “like” no Facebook? Para onde é que vão as nossas pegadas digitais? E o Estado? Será que em nome da governação digital e da transparência estamos a abrir a caixa de Pandora? Será que estamos a criar monstros que um dia deixaremos de poder controlar? Foi aí que perdi a minha inocência digital! 

Durante séculos, o mundo habitou-se aos garimpeiros, homens sonhadores em busca de pedras e metais preciosos. Hoje, os garimpeiros são outros, os sonhadores descobriram algo ainda mais valioso: os dados! Por isso, hoje assiste-se a uma verdadeira caça aos dados, onde cada um de nós é tido como matéria prima a explorar. À semelhança do velho garimpeiro, as atividades dos novos garimpeiros escapam ao controlo da tímida fiscalização (in)existente. Por isso, há uma pergunta que não me sai da cabeça: quem é que nos protege dos novos garimpeiros e da indústria de dados? Alguns dirão o Estado, mas como é que o Estado nos pode proteger se o próprio tem tido um papel ativo nesta nova indústria? 

São questões complexas e difíceis de responder, porque os benefícios do mundo digital são inquestionáveis. Por isso, convidei a Prof. Joana Gonçalves de Sá para nos ajudar a compreender para onde é que vão as nossas pegadas digitais. Esta investigadora desenvolveu a sua tese de doutoramento na Universidade Harvard (EUA) e atualmente é Professora e coordenadora do grupo de investigação em Data Science and Police Lab na NOVA - School of Business and Economics (Portugal). 

As explicações de Joana de Sá estão longe de me tranquilizar. À semelhança daquilo que vários especialistas têm alertado, aquilo que ela nos diz é que: - “todos os dias, ao fazer uma pesquisa na Internet, ao utilizar o telemóvel ou o cartão Vinti4, criamos "migalhas digitais", registos das nossas ações diárias. E há muitas utilizações para estas migalhas, mas foco-me em apenas duas: sistemas de recomendações e “Internet of Things”, IoT. 

Pensemos nos cartões de cliente frequente de um supermercado. Por que razão se “oferece” descontos a quem os usa? Na verdade, as empresas estão a comprar os seus dados, para perceber padrões de compra. Com esta informação podem fazer uma melhor gestão de stocks, ou ganhar conhecimento e influência sobre as suas escolhas. Podem, ainda, criar “sistemas de recomendações”, oferecendo publicidade dirigida, por exemplo. 

É também com base no seu comportamento passado que o Facebook sabe o que lhe mostrar a cada minuto. Alguma vez se perguntou porque é que algumas operadoras lhe oferecem acesso gratuito ao Facebook? Ao escolher não pagar para aceder ao Facebook no seu telefone, está a dar em troca algo muito mais valioso: os seus dados! Tão valiosos que a operadora não quer correr o risco de um cliente não ter dinheiro para aceder à Internet nesse mês e, com isso, perder acesso a si, aos seus amigos, à sua localização, às suas pesquisas”. 

Ela explica-nos ainda, que: - “para além dos sensores que trazemos connosco (por exemplo nos telefones), e do nosso comportamento online, existem, cada vez mais, sensores em nosso redor, no mundo real, desde câmaras de vigilância nas ruas até “frigoríficos inteligentes” que nos lembram quando comprar leite. A este enorme conjunto de sensores, ligados à Internet (e note-se que há mais dispositivos destes do que pessoas no mundo), chamamos “Internet das Coisas”, IoT – acrónimo em inglês – e a expectativa é que tanto nos possam melhorar a vida, aumentando a segurança ou facilitando o dia-a-dia, como facilitar a monitorização constante de todos os nossos passos, com graves consequências sociais”. 

Aliás, Joana de Sá apresenta-nos um exemplo em que a partilha de informação foi feita de forma legal e voluntária, mas que acabou por ter implicações inesperadas. Diz ela que: - “Em 2012, o New York Times relatou um caso em que, precisamente através da análise de perfis de compras, uma cadeia de lojas nos EUA gerava previsões sobre a gravidez das suas clientes. Uma dessas lojas recebeu a visita de um pai indignado por a sua filha adolescente ter recebido promoções para roupas de bebé e berços; mais tarde, quando o gerente da loja ligou para se desculpar, o senhor respondeu envergonhado que a filha estava mesmo grávida. A cadeia de supermercados soube antes da própria família”. 

Os riscos não residem apenas no sector privado. Os Estados também têm tido um papel relevante em toda esta nova indústria. Outro exemplo que ela nos apresenta é o do Sistema de Crédito Social que está a ser testado na China. “A China está a desenvolver uma experiência social de larga escala, um sistema de pontuação dos seus cidadãos, em que só os melhores pontuados é que terão a possibilidade de ter um passaporte ou aceder às melhores universidades. Este sistema só será possível graças à tecnologia de reconhecimento facial e aos algoritmos treinados, que por sua vez, dependem das “nossas migalhas.” Por isso, apesar de todas as vantagens da chamada “revolução digital”, os riscos são evidentes, e a ausência de uma fiscalização efetiva deixa-nos à mercê da “boa vontade” dos novos garimpeiros e da indústria de dados. 

Como a própria Joana de Sá escreveu recentemente para o jornal Público (Portugal): - “há, normalmente, uma face negra nas revoluções e esta certamente não foge à regra”.


Investigador no MRC Laboratory of Molecular Biology, Cambridge Biomedical Campus, Reino Unido. 

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Autoria:Jailson Brito Querido,23 mai 2019 12:08

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  17 fev 2020 23:21

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