A Binter assegura ainda as ligações aéreas internas nos arquipélagos de Cabo Verde e da Madeira.
São oportunidades de circulação no espaço da Macaronésia muito interessantes para o turismo, intercâmbios culturais, desportivos e científicos, e para os negócios.
Ao longo de milénios, as trocas comerciais (leia-se negócios) foram o principal motor de contactos entre povos.
Há tempos, ouviu-se o ruidoso e mediático desabafo do presidente de uma das câmaras de comércio nacionais, que frisava que a CPLP nunca avançará enquanto não houver mobilidade facilitada de homens de negócios nesse espaço. É verdade, e as relações entre Cabo Verde e as Canárias são prova disso, pela positiva.
Fruto de ligações empresariais que se iniciaram no início dos anos 2000 através das câmaras de comércio dos dois arquipélagos, hoje estão estabelecidas em Cabo Verde cerca de 60 empresas canárias em várias áreas de negócio, um número que chega a ser “obsceno” pela positiva e que surpreende quem ouve.
A Binter Canárias assegura a ligação entre o Sal e Las Palmas com um novíssimo avião Bombardier, cujo nome não poderia ser mais elucidativo: “Islas de Cabo Verde”.
Tive a oportunidade de fazer esse percurso há dias em compromissos profissionais, e uns dias depois o percurso entre Las Palmas e a Madeira, também na mesma companhia aérea. Uma experiência que recomendo tanto para quem quer fazer férias, compras, negócios como, naturalmente, para quem quer estudar o desenvolvimento turístico (e não só) desses arquipélagos irmãos das nossas ilhas.
No tocante ao turismo, as Canárias e a Madeira estão muito mais avançadas do que Cabo Verde e os Açores, resultante de uma ofensiva bem mais antiga nesse sector. Conheço de longa data esses dois arquipélagos, que são para mim um case study. Apesar de os ter visitado várias vezes, nunca me tinha acontecido viajar directamente de um para o outro, e por isso esta experiência foi nova e estimulante.
Pude confirmar melhor o que bastas vezes defendi aqui neste espaço: o carácter mais massificado do turismo das Canárias em contraponto ao turismo mais seleccionado da Madeira. Mais quantidade nas ilhas de nuestros hermanos, mais preocupação com a qualidade na ilha que viu Cristiano Ronaldo nascer.
Calhou a nossa delegação estar no Funchal no dia em que se realizou a cerimónia da entrega dos Óscares do Turismo da Europa, que em 2019 se realizou na ilha que há alguns anos é considerada o Melhor Destino Insular do Mundo. A jogar em casa, a Madeira não deixou os seus créditos por mãos alheias e revalidou o título de Melhor Destino Insular da Europa, um bom prenúncio para revalidar também o título mundial mais para o final do ano.
Os madeirenses não brincam em serviço e, logo na área das chegadas do aeroporto Cristiano Ronaldo, estão em exibição vários Óscares do Turismo ganhos pela ilha e os seus hotéis nos últimos anos. A primeira impressão que se tem ao ver esses prémios é de respeito pelo trabalho e resultados alcançados, impressão que cresce quando se visita a ilha com olhos de ver.
A nossa primeira “visita de estudo” foi ao Hotel The Vine, várias vezes considerado o melhor boutique hotel do mundo. Cumpri com excitação e prazer de criança um sonho de há vários anos, com uma visita guiada por parte do CEO, que culminou com um welcome drink no majestoso roof-top bar, onde se disfruta, de um lado, de uma vista magnífica do mar e, do outro, da incomparável visão da cidade a subir pelas montanhas, a cidade que normalmente é comparada a um enorme presépio iluminado.
O The Vine é único. A extraordinária decoração foi obra de uma decoradora madeirense famosa mundialmente e está toda inspirada na produção do Vinho da Madeira, desde o chão, as paredes, até ao spa, onde se fazem tratamentos de pele à base de extractos de vinho. Resta dizer que, no acto da independência dos EUA, os pais fundadores brindaram com Vinho da Madeira.
A Madeira e os seus hotéis deveriam fazer parte de um programa obrigatório de estudo para todos os nossos governantes, autarcas e dirigentes dos sectores públicos e privados.
Coincidiu estar na ilha o nosso primeiro-ministro e também o ministro da Cultura, por ocasião da I Cimeira Cultural Atlântica Madeira-Cabo Verde. Parece que as minhas preces já antigas de várias anos começam a tornar-se realidade. Esperemos que haja muitas mais cimeiras e que se estendam também ao desporto, ao ensino e aos negócios, e que o aumento anunciado da conectividade entre os dois arquipélagos se torne efectivo brevemente.
A ilha gémea da nossa ilha de Santo Antão é dos melhores exemplos que poderemos seguir na planificação de um turismo de qualidade, oposto ao que, infelizmente, temos no Sal e na Boa Vista.
O turismo baseado nos grandes eventos que deu a Madeira a conhecer ao mundo deve ser fonte de inspiração para as nossas cidades, particularmente para a cidade do Mindelo, que possui eventos muito semelhantes. Várias vezes aqui disse que a Madeira parece a fusão das ilhas de São Vicente e de Santo Antão. Para qualquer cabo-verdiano, visitar a Madeira e ver nomes como Assomada, Porto Novo, Calheta, São Vicente, Fajã, Ponta de Sol, entre outros topónimos conhecidos, constitui uma aula de História das nossas origens.
Visita obrigatória na Madeira é a produção de aguardente e da famosa poncha. Como não nos sentirmos em casa?!
Mais a norte, o belíssimo arquipélago dos Açores alberga uma crescente comunidade cabo-verdiana, que vai de apreciados pescadores, que são recrutados pela sua competência, a uma comunidade de médicos, entre os quais conto muito bons amigos de infância, que tive a oportunidade de visitar.
A criação da Rota Macaronésia da Cultura e dos Jogos da Macaronésia são uma prioridade evidente. Se os negócios são importantes, a cultura e o desporto cimentam como ninguém as relações entre povos, particularmente povos com uma história comum.
A experiência acumulada de organização de eventos culturais e desportivos, particularmente dos festivais internacionais de música, deve ser uma ponte que alavanque esses intercâmbios.
A nível universitário, Cabo Verde poderia sugerir a criação de uma espécie de Erasmus macaronésio, com alunos a fazerem semestres em instituições superiores e universidades equivalentes. Porque não?
Não temos de ficar restringidos à CPLP, CEDEAO, etc. Sem desprimor por esses espaços de intercâmbio, parece-me mais fácil e evidente atacar este mercado macaronésio atlântico nas várias frentes já mencionadas.
Cabo Verde tem a ambição de criar um Centro Internacional de Negócios que seja uma referência no Atlântico Médio e sirva de alavanca para acelerar o processo de internacionalização da economia cabo-verdiana, atraindo e fixando investimento externo e servindo também como instrumento de diversificação e incremento das exportações do país. A Madeira tem uma experiência já de 25 anos e as Canárias possuem uma Zona Especial, que foi beber a uma tradição centenária do porto franco de Las Palmas. Estamos atrasados, mas temos a oportunidade de aprender com o sucesso e os erros de quem partiu à frente.
Há cerca de 18 anos, visitei o clube de golfe mais antigo de Las Palmas. Vi lá as mesmas fotografias de famílias inglesas que me habituei a ver desde criança no Clube de Golfe de São Vicente. Temos uma história comum que não é conhecida pela maioria. Os portos carvoeiros do Funchal, de Las Palmas e do Porto Grande do Mindelo asseguraram no passado o abastecimento de toda a navegação atlântica, passando por eles navios com milhares de emigrantes europeus a caminho da África Austral, das Américas e mesmo de destinos mais longínquos na Ásia e na Austrália.
No turismo, o Roteiro da Macaronésia é um produto que se poderá vender aos mercados emissores mundiais, particularmente aos ingleses, que criaram esses portos carvoeiros.
Mais atrás no tempo, a Cidade Velha foi fundada e o povoamento de Santiago foi feito na esperança de reprodução do sucesso da Madeira, que chegou a ser o maior produtor mundial de açúcar. A irregularidade das chuvas não permitiu isso, e a posterior descoberta do Brasil e a produção de cana de açúcar por lá e nas Caraíbas ditaram o declínio da Madeira, o que obrigou os “lançados” cabo-verdianos a procurarem os rios da Guiné para comercializarem outros produtos, incluindo escravos, comércio de má memória.
Num tempo em que se esgotam os recursos terrestres do planeta e os humanos começam a olhar como alternativa para as riquezas marinhas, os arquipélagos da Macaronésia devem perceber que dominam uma boa parte de um continente pleno de riquezas submersas ainda por descobrir: esse continente chama-se Oceano Atlântico.
Juntos, esses arquipélagos dominam centenas de milhares de quilómetros quadrados de montes e vales submarinos por explorar. É bom que compreendam isso e tracem estratégias concertadas para a sua exploração. A economia marítima é um dado de futuro para todos, e a criação de hubs marítimos e aéreos faz sentido nestas economias circulares no meio do Atlântico.
Nos encontros profissionais que mantivemos em Las Palmas e no Funchal ao mais alto nível, tentei transmitir a ideia de que os nossos arquipélagos não são concorrentes, mas complementares. A ideia foi bem-recebida e pude constatar que nessas ilhas se percebe bem que temos uma história comum que deverá ser estreitada nestes tempos globalizados de transportes e comunicações facilitadas.
Que assim seja!
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019.