Ficção
«A professora Maria Alice era boazinha, não maltratava os meninos. Todo o mundo gostava dela. (…)
O posto de ensino do Norte do Meio [onde lecionava] estava instalado numa casinha solitária alcandorada na meia encosta dum morro. De pedra e barro, sem reboco, coberta de palha cor de cinza, a casa era composta de duas peças com ligação por uma porta interior, ambas com piso de terra calcada. A frente dava para o terreiro, onde uma velha alfarrobeira estéril espalhava a sua sombra esguedelhada. O compartimento menor, onde quase só cabia o catre rústico e um mocho a servir de banca de cabeceira, era o quarto de dormir da professora. Uma porta baixa e estreita, com um cortinado de vichi, comunicava com o compartimento maior que era a sala de aula. Dois bancos compridos, de figueira brava, sem encosto, destinavam-se aos alunos. (…) Ela sentava-se num mocho atrás da mesa, também de figueira brava, obra de falqueador daquelas bandas. Uma caneta, um tinteiro de boca estreita, a vara de marmelo comprida e flexível e o quadro preto de madeira, com a pintura deslavada, suspenso do muro por grossa estaca de alfarrobeira, entre a mesa e os bancos – eis, por miúdos, os apetrechos escolares do posto.»
Uns quantos meses e páginas transcorridos, Maria Alice escreve uma carta à irmã:
«25 Nov.º de 19…
A tua presença viria trazer-me um pouco de alegria e coragem, mas não venhas! (…). Começarias por ficar espantada e desolada de ver como as coisas mudaram tanto. As coisas e as pessoas. (…) O medo pintado na cara de toda a gente, pais e mães de filhos principalmente, no terror da fome que a lestada, e agora a falta de chuva, ameaçavam. (…). Tenho só quatro alunos agora, filhos duns proprietários que moram perto da escola. (…). Parece-me que vou pedir para voltar para S. Vicente. Não posso continuar aqui enquanto a crise durar. Além disso, que faço eu nesta escola sem alunos?...»
3.ª ed. de 2017, pp. 52-55; pp. 101-103.
A realidade supera a ficção
Dando continuidade ao exercício que me vem ocupando, o de [re]cortar na literatura fragmentos da nobre arte de ensinar e comprovar a sua autenticidade na aridez da legislação e das fontes arquivísticas, sublinhei as seguintes palavras-chave: professora, posto de ensino, apetrechos escolares e escola sem alunos.
Professora
Por lei, o vencimento dos professores era de 300$000 e o das professoras de 240$000 (Decreto de 14 de agosto de 1912). José Lopes insurgiu-se no semanário A Voz de Cabo Verde em 3 de agosto de 1914: “Não vemos também razão plausível para que a professora primária tenha de ordenado apenas 205 escudos por mês. O serviço que ela presta é tam importante como o que se exige ao professor, sendo mesmo certo que sob o ponto de vista moral a missão da professora é ainda mais dificultoza e cheia de exigências, se tivermos de atender ao principio de que pela educação da mulher é que se há de efectuar a grande obra da nossa vida futura de nação culta e livre”.
Posto de ensino
Em fevereiro de 1953, o Boletim de Propaganda e Informação noticiou: “Em Cabo Verde, a partir de 1945, têm-se construído muitos edifícios para escolas e postos escolares, pondo-se assim termo, em grande parte, ao mau aspecto que as casas arrendadas, térreas e cobertas de colmo, oferecem, quer à feição pedagógica, quer à apreciação de quantos as enxerguem e as visitem nas freguesias rurais, em especial. Algumas destas casas são ainda utilizadas para postos escolares, mas é de esperar que em futuro breve sejam substituídas por edificações apropriadas, por ainda acrescer que aquelas casas, por falta de luz, ar e espaço, causam tédio às creanças tirando-lhes o gosto de frequentarem a escola”.
Apetrechos escolares
“Os livros, a ardósia, o papel e outros utensílios indispensáveis para os exercícios escolares, nunca o aluno os leva na sua totalidade, passando-se meses e meses sem que êle possa treinar nesta especialidade de ensino, o que o atraza um, dois e mais anos na preparação dos seus exames” (O Futuro de Cabo Verde de 29 de julho de 1915).
A vara de marmelo era um apetrecho obrigatório na sala de aula. A Voz de Cabo Verde denunciou em 29 de março de 1911 “o uso e abuso da palmatoria, das orelhas de burro e de outros castigos antiquados que moem os orgãos das creanças e lhe obcecam o espirito, dando-lhe o hábito da humildade requintada até ao abjecto, e ensinando-lhe a obediência desarrazoada e servil”.
Escola sem alunos
A pergunta da professora Maria Alice: «que faço eu nesta escola sem alunos?...» não é mero adorno literário, mas uma interpelação real numa terra e num tempo onde “a crise persiste e a fome não poderá deixar de continuar a vitimar cada vez mais gente, se não se empregarem todos os esforços em debelar tão triste estado” (informação do Delegado de saúde Loureiro Dias, ilha de Sto. Antão, Boletim Oficial de 6 de julho de 1918).
O clímax da crise transparece numa Portaria de 3 de outubro de 1921: “Atendendo à diminuta frequência escolar, em quasi todos os postos de ensino da província, devido à grave crise que este arquipélago atravessa; (…) determina-se que sejam encerrados, temporariamente, todos os postos de ensino da Província de Cabo Verde, com excepção [de seis] (…)”.
Em conclusão
A representação da figura da professora na literatura universal – Maria Alice em Manuel Lopes, a professora Oliviero em Elena Ferrante1 e Clarissa em Érico Veríssimo2, entre outras – imortaliza o modo como a sociedade idealizou o docente no feminino, regista o percurso de incorporação das mulheres na profissão, as condições de trabalho e de vida árduas e solitárias, e as lutas pela igualdade salarial e acesso aos direitos civis.
Para muitas mulheres, na primeira metade do século passado, “o ensino representava a concretização das suas aspirações de independência, expressão pessoal e uma oportunidade para influenciar a comunidade onde viviam” (Vaughn-Robersan, 19843). A leitura integral dos Flagelados permite-nos concluir que assim terá acontecido com a professora Maria Alice.
Obs: O texto observa as normas do Novo Acordo Ortográfico com exceção das citações que respeitam as grafias da época.
1 A amiga genial, Ed. Relógio d’Água (2011).
2 A professora Clarissa é personagem do romance Música ao longe (1935) de Érico Veríssimo.
3 «Sometimes Independent but Never Equal – women teachers, 1900-1950: the Oklahoma exemple», Pacific Historical Review, 39
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 918 de 3 de Julho de 2019.