Por ser um ano pré-eleitoral o mais normal é que se acentue a polarização política entre os partidos e aumente substancialmente a crispação. E o facto de se realizarem eleições disputadas para a liderança do maior partido da oposição no próximo mês de Dezembro certamente irá afectar o tom e a natureza do discurso político em direcção ao governo. Cada candidato vai querer ser o mais contundente e efectivo nas críticas à governação. Também não deverá ficar grande espaço para grandes entendimentos entre os grupos parlamentares que implicam maiorias de dois terços dos votos dos deputados. Com estas pedras no caminho dificilmente irá ser um ano parlamentar mais produtivo, correndo-se o risco de a legislação prometida em matéria eleitoral, tanto quanto à paridade de géneros como à limitação de mandatos, ficar comprometida. Nem tão pouco se conseguir acordos alargados no provimento de cargos exteriores à Assembleia Nacional como o Provedor da Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial que há mais de um ano esperam ser substituídos.
Quer isto dizer que não será este ano ou o próximo que se vai constatar uma melhoria na qualidade do trabalho parlamentar. Com o ciclo eleitoral já à porta e as três eleições autárquicas, legislativas e presidenciais separadas cerca de seis meses umas das outras, não será o melhor momento para se reparar as relações parlamentares no sentido de maior efectividade seja na produção legislativa, seja na elucidação da nação dobre os problemas candentes do país ou ainda na fiscalização dos actos da governação. De facto, não se pode considerar que nestes últimos anos houve avanços entre as forças políticas quanto à capacidade de negociar, de firmar acordos e de chegar a compromissos em matérias cruciais para o país. Pelo contrário. Como todos se vêem ou querem apresentar-se como representantes genuínos e únicos do povo, com exclusão dos outros que são tidos como antipatriotas, negativos e maledicentes, não fica espaço para o diálogo.
Mesmo fortes chamadas à realidade, como foram, entre outras, a quase estagnação económica dos primeiros cinco anos desta década e a seca desde de 2017, não se mostraram suficientes para alterar o tipo de debate político em Cabo Verde. Persiste-se no confronto que impede visão clara e plural sobre os problemas do país, dificulta a identificação das prioridades e não mobiliza vontades para se investir no futuro. Complica a situação o facto de quaisquer alterações favoráveis do ambiente externo, quase sempre conjunturais, mas com repercussões positivas no país, serem suficientes para se esquecer males passados, vulnerabilidades reveladas e omissões até ao momento despercebidas. Ultrapassado o mau momento é só ver o país a retomar o seu caminho imperturbável como se nada tivesse acontecido até que desperte com mais um choque externo. Entretanto, reformas são adiadas, cresce a inércia social e cultural impeditiva do desenvolvimento e diminui a capacidade de resiliência a todos os níveis.
Para os autores do best-seller “Porque Falham as Nações” Daron Acemoglu e James Robinson no seu novo livro “O Corredor Estreito: Estados, Sociedades e o destino da Liberdade” não basta que se tenha uma moderna Constituição e leis democráticas para se dar a democracia como realizada, para se considerar garantido o exercício da liberdade e criadas as condições e oportunidades para maior prosperidade. Ao lado do Estado forte e legitimado pelo voto popular tem que existir uma sociedade também pujante, alerta e fiscalizadora capaz de correr a passo e passo com o Estado nesse corredor estreito onde espaço para liberdades existem, garantem-se com eficácia serviços do Estado, a começar pela segurança e justiça, e se assegura que a dinâmica plural de ideias, projectos de futuro e escolha de prioridades sirva a todos e não seja sequestrado por qualquer grupo político ou económico para benefício próprio. Ninguém quer viver na anarquia ou ausência de Estado mas também ninguém deseja um Estado autoritário sem limites no uso do poder. Segundo Acemoglu e Robinson só se consegue o equilíbrio certo e o desenvolvimento com uma sociedade que não só compete mas também coopera ou na perspectiva de Raghuram Rajan no seu livro “O terceiro pilar” com uma comunidade activa e focada, capaz de conter o Estado e o mercado nos seus excessos e garantir que o impacto do desenvolvimento chegue a todos.
O problema com as democracias actualmente é que a sociedade ou não se engajou na consolidação da democracia ficando essencialmente pela formalidade derivada da adopção da Constituição e das leis modernas ou deixa-se levar por discursos políticos do tipo populista que enfraquecem os princípios e valores liberais e descredibilizam as instituições democráticas. Assiste-se mesmo em democracias mais velhas a um processo que o cientista político Yascha Mounk chama de “desconsolidação” democrática devido a várias razões, designadamente o aumento da desigualdade social, a pressão migratória e os efeitos da globalização. Aconteceu no Reino Unido e na semana passada e viu-se como o Supremo Tribunal, por unanimidade dos 11 juízes, pôs fim a algo similar que visava diminuir o papel do parlamento na discussão do Brexit
Em Cabo Verde a construção das instituições democráticas não foi acompanhada de uma adesão activa e engajada com os princípios e valores liberais. Para isso contribuiu uma inusitada preocupação em desculpar o regime de partido único cujos valores estavam nas antípodas do regime democrático. Por outro lado, falta à sociedade civil a base económica para uma verdadeira autonomia perante o Estado e na luta de todos e de cada um para se “desenrascar” faltam razões fortes para a defesa da liberdade económica, da igualdade de oportunidades e das bases para a criação de riqueza. Nestas condições a pressão para a “desconsolidação” democrática é real. Vê-se na descredibilização do parlamento, no comportamento às vezes pouco curial dos órgãos de soberania e seus titulares, nos ataques ao sistema judicial, no assalto populista aos partidos e na movimentação de interesses corporativos junto do Estado.
Inicia-se um novo ano político e é sempre de desejar que seja diferente e se reoriente para preparar o país para eventuais consequências das incertezas criadas designadamente pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, a instabilidade no Médio Oriente e no mercado petrolífero e a quase certa quebra na dinâmica da economia mundial. Cabo Verde cresceu nos dois primeiros trimestres deste ano acima dos 6%. Isso é bom, mas deve-se em grande medida ao impacto da conjuntura internacional favorável sobre as exportações e o turismo. Ninguém garante que continue assim. Os efeitos das incertezas, já visíveis no horizonte, serão maiores se o país, entretanto, não melhorar a sua competitividade e produtividade. E isso só se consegue com instituições fortes, uma sociedade engajada e uma profunda mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 931 de 2 de Outubro de 2019.