Um pouco mais tarde, em sincronia, como se conduzidos por uma máquina de precisão, os familiares e convidados com novos casais, novos filhos e companheiras e companheiros atualizados chegam juntos e é bonito o momento que constroem com cumprimentos, risos ruidosos, abraços largos e o atropelo das falas. Canções contam histórias do natal. Perfeição? Arriscado assumir a definição, mas sim, na verdade, há uma visível harmonia do sagrado e da mestria profana com o sublime. Porque não se consegue agarrar momentos especiais como esse e prendê-los junto de nós ou à janela da vida?
Do meu poiso de voyeurista noto que à medida que o tempo passa tudo fica incrivelmente calmo. Aliás, calmo não é a palavra certa, melhor seria abstrato ou impessoal. Para onde foram as exclamações e as inquietantes gargalhadas? Para onde foram os coros e os risos? Que é dos gestos de surpresa de vidas que se comemoram juntos? As crianças, porque se calaram? Porque não correm atrás das surpresas da noite? Sigo observando as emoções que vagueiam pelos vários rostos e oiço comentários definitivos, urgentes e cautelosos, sem destinatários visíveis, uma espécie de alegria privada, um pensamento solitário que cada um gere conforme os interesses cambiados pelos telemóveis. O bisavô continua a fazer perguntas, mas não sabe se alguém escuta: Porque as palavras não falam? Quem lhes cortou o dom? Porque não respondem? Porque não reconheço nelas os dias e a dor? Onde o seu riso? Porque não gritam ou praguejam? Porque não trazem novas vozes, novas lembranças… Porque perderam o sentido? Porque essa indiferença… porque, porque me abandonaram? Porque esse ruído estranho que eu oiço e não entendo? – olha à volta, perturbado, e interroga-se sobre o milagre que faz um pequeno aparelho como um telemóvel receber tanto consenso e atenção, qual privilegiado membro da família, e tenta compreender o visível carinho que lhe é dedicado e aos seus poderes. As histórias incríveis do curto tempo de vida dos smartphones, tablets, computadores, antigos e novos aparelhos misturam-se e chegam a comover. Ele gostaria também de se poder comover.
A bisavó, ausente no seu olhar, mantém o sorriso do início da noite. Em que nuvem viajará ela?
De repente um grito e uma exclamação funda de horror. Pessoas nervosas, inquietas e desarmadas. Desespero à solta. Uma criança chora. Um assalto? Um incêndio?
A exclamação pára o tempo e percorre a mesa e a casa.
A ideia de um filme “Vidas encapotadas” faz sentido. Sacudo o pensamento.
Um adolescente, meio sufocado, gagueja: – A internet foi-se. Um corte geral.
Pouco depois, sem nada que fazer, as crianças correm para as prendas e para o abraço da bisavó; os monossílabos ganham peso e falam dos que não estão, dos que não puderam comparecer, dos que nunca mais irão aparecer.
Recuperam-se amigos e gentes ausentes e dão-se-lhes risos e queixas, vida e carinho e nomes com vozes. Uma menina acusa o pai de não a visitar depois que arranjou uma filha nova. Discussões, piadas, alfinetadas, sorrisos, perdões e lembranças. É natal. Com uma espécie de pudor, mas encantado, o bisavô cumpre a promessa sempre adiada de falar do seu avô marinheiro e do encontro com uma sereia. Era a primeira vez que ele falava sobre isso e todos estavam atentos, emocionados até, por conseguirem ir tão longe na ancestralidade.
– Voltou! – Grita o adolescente da má nova, agora com um sorriso aberto e olhar feliz e que esteve sempre agarrado ao telemóvel. – A net voltou – gritou, beijando o aparelho, abraçando-o, olhando para ele como só se olha para uma pessoa muito amada. O bisavô fica sozinho com a fala suspensa e o resto da história por contar e o curto tempo de natal rapidamente é descartado, enquanto os convidados e familiares correm e agarram-se aos telemóveis, aos instrumentos que os irão conectar com um mundo diferente, o seu novo mundo. É a recuperação da vida à distância, possivelmente sem compromissos, sem constrangimentos, sem infelicidades. Ou, talvez, com tudo isso noutra dimensão e a outro ritmo.
O bisavô disse que tinha sono e abandonou a sala, deixando atrás uma realidade estranha, um tempo carregado de palavras de silêncio.
Ninguém o ouviu, nem mesmo a companheira de sempre. Estavam todos nas nuvens.
Bom Ano de 2020.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020.