Espaços com história III

PorAdriana Carvalho,16 jan 2020 9:52

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Tu moras no sobrado que dá para o largo e vais até à Praça mais as tuas amigas enquanto a banda toca peças estafadas. O moço Poeta que de ti se enamorou um dia de-repente fugiu como uma sombra. - António Nunes

Um dos sobrados que dá para a Praça do Albuquerque mantém a traça arquitetónica original. O edifício situado na rua Sá da Bandeira (atual Av. Amílcar Cabral) tem uma fachadalateral na rua António Mena com uma entrada que dá acesso ao 1.º andar. A porta sob uma arcada em ferro forjado ostenta a data de1889. Segundo uma certidão do Governo-Geral da Província de Cabo Verde, de 26 de fevereiro desse ano, o prédio “que se compõe de lojas e primeiro andar, com quintal, teria sido adquirido pelo Banco Nacional Ultramarino, como pagamento de dívida e diversas execuções hipotecárias” 2.

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A fotografia acima, que data do início do século XX, tem como legenda: “Cabo Verde – S. Tiago – Casa Serra Oliveira & Co. O mais importante estabelecimento comercial da Praia, a Casa Serra, como foi popularmente conhecida, foi inaugurada em 1900. Possuía no primeiro andar o Hotel Club e no piso térreo a loja». 3

A Casa Serra & Cia tinha sido fundada em 1862 e aí se “vendiam produtos a grosso e a retalho, artigos de viagem, bilhetes postais ilustrados e variado sortimento de mercadorias nacionais e estrangeiras”, tendo “comércio por conta própria de agências de navios, pois eram agentes da Empresa Nacional de Navegação, da de Seguros Bonança (seguros terrestres), e da Companhia de Comércio e Indústria (seguros marítimos)” 4.

O prédio (onde hoje está a casa comercial Mundilar) foi adquirido em 1944 por Sérgio Barbosa Mendes, que constituiu a sociedade SERBAM, Lda. 5 Em finais do século XX, foi comprado pela Adega S. A.. No 1.º andar, onde residiu Sérgio Barbosa Mendes, foi instalada, em 1955, uma secção do Liceu Gil Eanes (que tinha sede em Mindelo) e, posteriormente, a Pensão Solmar. 6

Em 12 de maio de 2005, foi adquirido pela Firma Manuel Gomes dos Anjos & Filhos, S.A. (fundada em 1949 por D. Claudina de Pina Anjos, esposa do proprietário), que empreendeu uma profunda restauração do edifício, tendo recuperado a inscrição “LICEU GIL EANES 1955-1960” por cima da entrada lateral e reproduzido o sino de bronze que tocava no início e no fim das aulas. 7

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Fotografia de Ildo Carvalho, 2007.

Porquê uma Secção do Liceu Gil Eanes na Praia?

Na época colonial o desenvolvimento do sistema escolar criou uma profunda assimetria social entre os dois principais centros urbanos: Mindelo dispunha de um liceu desde 1917 e a Praia, não obstante o estatuto de capital, só viria a beneficiar de liceu 43 anos depois. Os jovens da Praia (e da ilha de Santiago) ficavam “condenados” à instrução primária, era-lhes vedada a educação secundária e superior e as legítimas aspirações à mobilidade social.

A jornalista Maria Helena Spencer, num artigo publicado no Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação, em abril de 1952, expressa o inconformismo da população da Praia:

“Em Cabo Verde, quem tenha filhos e não possa viver em S. Vicente, tem que contar com uma boa dezena de anos de apoquentações e dificuldades. (…)

Mas, principalmente nas ilhas de Sotavento, o estudo liceal é um problema dificílimo.

Na Praia, duas ou três pessoas procuram, com afinco ajudar a resolvê-lo, preparando as crianças para os exames do liceu. Mas lutam com dificuldade de toda a ordem: por mais que façam e empreguem todo o seu saber e dedicação não conseguem pôr-se a par dos programas e métodos de ensino no liceu e, no fim do ano, vêm inutilizado todo o seu esforço, com uma percentagem de cerca de 75% de reprovações que os deixam envergonhados, criam complexos de inferioridade nas crianças e causam grandes prejuízos económicos à maioria dos pais que, muitas vezes não podem, no ano seguinte, obter o necessário para nova despesa. (…)

Muitos adotaram já o sistema de mandar os filhos para S. Vicente durante todo o ano letivo. Mas, será essa a melhor solução? Não o creio.

Começa por ser bastante cara: no geral, a estadia de uma criança em S. Vicente anda à volta de 600$ ou 700$ [o salário de um aspirante na função pública na época era 975$] 8. Isto, sem falar nas despesas próprias do estudo, com livros, propinas, explicadores, etc.”

Na opinião da jornalista “o ideal, para todos, seria uma escola ou colégio, aqui na Praia, patrocinado pelo Estado e com caracter oficial” ( idem). No mesmo ano, um grupo de cidadãos “representando os concelhos do Maio, Brava, Fogo, Tarrafal, Santa Catarina e Praia” requereram ao Governador a criação de um “colégio-liceu” na Praia (doc. ANCV). Em setembro de 1953 o Cabo Verde Boletim anunciava a criação de um colégio-liceu municipal na Praia, em resposta a esse requerimento.

Entretanto, no edifício da Escola Grande funcionava um Curso de Explicações, que preparava os alunos para se apresentarem a exame no Liceu em Mindelo; aí lecionaram ilustres cidadãos como Arnaldo França, Guilherme Rocheteau, Alberto Lopes Almeida, José Pinto, Alfredo Veiga 9.

Finalmente, pelo Decreto n.º 40.198 de 22 de junho de 1955, foi criada a Secção do Liceu Gil Eanes na Praia, que começou com 233 alunos, sendo 100 do sexo feminino. Funcionou durante cinco anos no 1º andar da “Casa Serbam” (renda anual de 36.000$, cf. orçamento da Instrução Pública, B.O. de 31 de dezembro de 1955).

Findo o primeiro ano letivo, o Vice-Reitor Aníbal da Cunha Leal considerava as instalações “uma adaptação cheia de deficiências e quase sem as mínimas condições para o fim a que se destina” e como “solução urgente e inadiável” aponta “a conclusão, rapidamente possível, do edifício em construção que se destina à Secção do Liceu de Gil Eanes na Praia” (Relatório, 1956).

Desse edifício falaremos na próxima coluna.  

__________________________________

1 Poemas de Longe, Lisboa, MCMXLV. 2 Governo-geral da Província de Cabo Verde, 26 de fevereiro de 1889. Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa. Citado em Gomes, Lourenço (2008). Valor simbólico do Centro Histórico da Praia – Cabo Verde</em>. Tese de doutoramento, Universidade Portucalense. 3 In “Documentário, acontece… na Praia”,Esquina do Tempo,</em> de Manuel Brito Semedo (https://brito semedo.blogs.sapo.cv/104887.html) 4 Blog Praia de Bote, de Joaquim Saial (https://mindelosempre.blogspot.com/2015/06/1565-panu-di-tera-vendidos-na-casa.html) 5 Cf.escritura lavrada na Praia em 15 de abril de 1944. Informação de Jorge Sousa Brito em "https://www.barrosbrito.com/4581.html"> 6 Informação do Sr. Mário Gomes dos Anjos, PCA da Firma Manuel Gomes dos Anjos & Filhos, S.A., em 11 de dezembro de 2019. 7 Idem. 8 Idem. 9 Idem. 


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:Adriana Carvalho,16 jan 2020 9:52

Editado porSara Almeida  em  8 out 2020 23:21

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