Entretanto, o governo já fez chegar à Assembleia Nacional a proposta de lei que dota a Praia de um estatuto administrativo especial.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.