RAIVA

PorDina Salústio,10 fev 2020 10:46

Chego a Lisboa e rapidamente faço uns telefonemas para me situar. Aproveito para as notícias restritas, os queixumes e as vanglórias. Ao escrever esta palavra dou conta que há glorias vãs, vazias, pequenas e parvas sobretudo quando nos entregamos aos pequenos feitos – que, possivelmente, julgamos mais à nossa dimensão - e para os quais, na verdade, com nada contribuímos. Então para quê aventurarmos a cair no ridículo de forma tão pretensiosa e pobre?

Leio o parágrafo e sinto raiva nas palavras. Sim, escrevo com raiva e o assunto inicialmente pensado para a crónica perde oportunidade porque é inútil. Tudo, porque duas pessoas, dois amigos se foram. Assim, de uma só sentada. Para sempre. Toda a gente a pensar que eu sabia, mas, de facto, nem sempre a disponibilidade para atender os amigos é suficiente quando oceanos nos separam, ou quando fazemos com que os oceanos nos separem. O que eu sinto não é saudade. É uma dor esquisita que eu poderei chamar abandono. Saudades terão as famílias, os filhos, os colegas. Tantas vezes, inúmeras vezes, que a propósito de um conhecido doente dizíamos para esses amigos, até com a autoridade de ser mais velha, que fossem ao médico e fizessem o controlo da próstata. Tantas e inúteis vezes! E eles, sempre, ligeiramente comentando que estava tudo bem, que haviam de fazer o controlo e, como em fala combinada, contavam que seria desagradável que um homem lhes tocasse a intimidade. Que intimidade!? Se a intimidade de um homem pára e passa por aí, pela próstata, ai de nós, que o mundo está em perigo! A intimidade de alguém, eu ou eles, passa pelo carater, pelas lutas e escolhas. Por certo não passa por essa parte do corpo. Certamente que não.

Como este raciocínio sobre intimidade, velho e decadente, como este pensamento ficou lá atrás no seculo XX! Eles foram-se sem eu ter tido paciência para lhes repetir cinquenta vezes mais o quanto ridículo e machista era o seu pensamento retrógrado.

Mas eu queria ter tido oportunidade para eles se comprometerem na defesa da sua saúde. Por eles, pelos que amavam e por nós. Falámos tantas abobrinhas, aguentámos tantos silêncios, fugimos tanto de nós mesmos que acabámos por simplesmente desprezar as pessoas que nós somos. E esses dois amigos foram os últimos que nos deixaram, vítimas do cancro da próstata. Hoje, quando me falassem de vergonha, de sensibilidade e de exposição, só queria ter tido oportunidade para lhes perguntar: - E as mulheres? E a hipotética “intimidade” das mulheres?

Será que eles pensavam que é fácil irmos a uma consulta de ginecologia ou de obstetrícia ou simplesmente a uma consulta de enfermagem, onde nos expomos, ao nosso corpo, suas fragilidades e suas histórias? Será que pensavam que quando nos mostramos durante uma consulta de especialista é um passeio, uma festa, um prazer? Toda a gente tem pudor. E ainda bem. Mas uma coisa é pudor e outra, bem diferente, é não pensar e agir com inteligência. Quando levamos a nossa filha ou a nossa neta pela primeira vez à ou ao ginecologista e elas, tão jovens e tão adolescentes, nos olham com olhos interrogativos, será que os homens pensam que não doem em nós os seus receios, a sua inibição? Será que vocês pensam que não as incomoda o sentido da aprendizagem?

Da mesma forma que levamos as nossas meninas às consultas de ginecologia devemos acompanhar e falar, desde cedo, de forma programada com os nossos rapazes para não serem ignorantes e ficarem cativos da estupidez. Os tempos são outros, é verdade. Há muita informação, outra abertura e maior responsabilidade face à saúde, mas infelizmente ainda há jovens que abandonam o seu corpo. Se os meus amigos estivessem vivos eu iria cuidar melhor deles, gritar com eles, até, mas não, fiquei no quase silêncio e daí, hoje, a minha raiva, sim, e a saudade. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Dina Salústio,10 fev 2020 10:46

Editado porSara Almeida  em  10 fev 2020 10:46

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