Em Cabo Verde, para nos localizarmos, o hábito do beijo social era comum apenas nas classes sociais mais elevadas e normalmente eram as mulheres que se cumprimentavam com o beijo ou ainda e raramente com os homens da família.
Nos restantes grupos sociais não se praticava esse tipo de cumprimento e só mais recentemente, num horizonte de poucas décadas, é que o hábito se popularizou até se tornar comum, seja no meio rural ou urbano.
E como estamos a falar do beijo é de referir que a nível global e ao longo dos tempos, essa prática sofreu evoluções significativas e, como exemplo, notar que talvez no começo – diz a história – eram os homens das classes políticas e sociais elevadas que se cumprimentavam entre si com beijo e na boca. Em algumas regiões do globo este hábito mantém-se, embora já não seja na boca (que saiba) e se tenha generalizado nessas regiões, cruzando todas os seus estratos.
Estas e as outras mudanças que se operam nas ilhas e a nível global devem-se ao cinema, mas mais à televisão, aos movimentos migratórios entre os meios rural e urbano e do exterior para as ilhas e vice versa, à evolução das sociedades, aos instrumentos e conceitos que as regulam, à penetração e cruzamento dos diversos setores sociais, aos meios de comunicação e à democratização dos costumes.
Refira-se que não estamos a referir ao beijo sensual que, parece, tem a sua primeira referência na literatura cerca de mil e duzentos anos AC.
Mas, porque é que estamos a falar, en passant, do beijo? Simplesmente porque as montras estão a lembrar São Valentim, o patrono dos namorados, e decidi nesta crónica de viagem abordar o atual COVID-19, vírus da família do Coronavírus que é uma ameaça mundial e ao único instrumento de luta que hoje temos, a Prevenção.
Como cabo-verdiana a minha forma usual de cumprimentar os amigos é com beijo e abraços. Acho que um cumprimento efusivo faz parte da introdução para uma conversa, quando não, para um café ou início de um trabalho. Devo dizer que exageramos muitas vezes nessas demonstrações, falo contra mim, mas a verdade é que nós nos moldámos assim.
Falando na Prevenção contra o Coronavírus o que podemos e devemos fazer é meter um travão nas manifestações de carinho ou sejam no beijo e nos abraços. E, por favor, vamos determinar que isso fica proibido em relação às crianças. Mesmo que não seja por causa do COVID-19, que seja pelas constipações e gripes frequentes nas ilhas e outros distúrbios na saúde delas.
Um desafio é podermos aceitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde como uma proposta que exige uma decisão que vai para além da saúde e da cidadania, mas sim, e principalmente, de vida. O COVID-19 mata.
Falamos do beijo porque estamos na quadra das festividades do São Valentim, porque temos uma população bastante jovem e, simplesmente, porque como sugere o título decidi nesta crónica referir, em redundância, às recomendações dos Serviços de Saúde face à prevenção da doença num território frágil, como são as nossas ilhas, sem grandes recursos e meios técnicos que facilitem uma cobertura extensa e suficiente da população, a não ser que essa população colabore.
Todas as pessoas com quem falo benzem-se (adivinho, porque estou longe da terra) e dizem: “Deus nos livre. Não temos como aguentar e vencer essa calamidade”.
É absolutamente verdade que não vamos aguentar se não incluirmos nas medidas de Prevenção a nossa decisão de lutar contra o Vírus.
É absolutamente verdade que não vamos vencer se não incluirmos nas medidas de Prevenção novos hábitos de higiene tais como lavar as mãos com frequência, não espirrar e tossir para o ar ou para cima das pessoas, não proteger a boca com as mãos ou com a roupa, enfim alguns comportamentos que dão origem à propagação de vírus e outros focos de doenças.
É absolutamente verdade que não vamos ter sucesso nesta luta se não incluirmos nas medidas de Prevenção novos comportamentos que impliquem uma convivência um pouco menos agarrados, com menos beijos e menos abraços e menos respirar uns para cima dos outros, menos frequência de locais com muita gente.
É absolutamente verdade que não venceremos o vírus se não incluirmos nas medidas de Prevenção novos comportamentos de disciplina e obediência face às diretrizes dos Serviços de Saúde em relação às medidas de isolamento ou quarentena, se for necessário.
Novos comportamentos têm custos, provocam incómodos e desconforto, porque implicam escolhas, cortes e perdas.
Quando, no final do almoço com um amigo a quem falei do conteúdo desta crónica, ele se despediu de mim com um elegante gesto da cabeça, soube que ele aprovara a mensagem. Desci a rua com uma espécie de vazio nos braços.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020.