Uma grande lição

PorLígia Dias Fonseca,24 fev 2020 9:40

Marega deu-me uma grande lição: não se pode calar e lidar tranquilamente com o racismo. Isso é a vitamina necessária para deixar crescer e alastrar o preconceito e a discriminação.

Estava eu no secundário e um dos meus colegas, daqueles que passam o ano pálidos e no verão viram cor-de-laranja, mau aluno, com indícios de quem não apreciava muito o banho, mas que, por razões que até hoje não percebi, acompanhava tudo o que o então Presidente da República de Moçambique, Samora Machel, dizia. E naquele tem­po, os meios de propagação das notícias não eram muito fáceis (estavamos no século passado, ainda não havia redes sociais e nem telemóveis). Mas este meu colega, cujo nome já nem recordo, tinha um prazer especial em chegar ao liceu, apanhar-me no meio da turma e dizer, «o teu presidente proibiu o uso de calças de boca-de-sino», «oh preta, estás tramada, agora o teu presidente disse que as moçambicanas não podem desfrisar o cabelo», e por aí adiante. Ele ouvia mais o meu presidente, do que o presidente dele. Um belo dia, o bom do tal colega, talvez emocionado com a minha passividade, calma e tranquilidade, resolveu abran­dar na agressividade e passou a chamar-me de «pretinha» Então, era pretinha para aqui, pretinha para acolá, preti­nha, pretinha, pretinha. No início eu ainda o apelidava de «barata descascada» (ter­mo que a minha mãe nos dizia para responder quando nos chamassem de pretas), mas, pouco a pouco fui desim­portando-me com esse trata­mento e até já não me sentia nada acanhada. Afinal, eu era mesmo preta! E os meus cabelos eram tão pretos que quando estava ao sol viravam azul, como muito atentamente o colega um dia exclamou: «pretinha, o teu cabelo virou azul!».

Esta é uma das mil e uma situações de racismo que eu senti e que ao longo da vida fui ignorando. E enquanto a minha irmã se sentia muito perturbada com essa discriminação, eu dizia que nem ligava. Aliás, até neste nosso Cabo Verde de mestiçagens, onde todos ou quase todos convivem sem nunca se importarem com a cor da pele (mas sem deixarem de achar que mais claro é mais bonito!), mas onde sem qualquer dúvida, ninguém deixa de ser Presidente da República, Primeiro-ministro ou Director, por ser branco ou preto, umas certas pessoas não se coíbem de me apelidar de mandjaca (assim como chamam a todos os que vêm do continente). E eu continuo a não ligar. E tenho dito à minha filha para fazer o mesmo. Há uns anos, quando ela e uma amiga estiveram num ATL no Jardim Zoológico de Lisboa, um dia voltaram super chateadas porque um dos colegas tinha-lhes chamado de pretas com todo o desprezo. A Rita que não leva desaforo para casa, ainda lhe disse umas boas . Mas quando me contaram, eu disse-lhes, como de costume, não liguem, meninas, esse é um ignorante a aos ignorantes viramos as costas. Mas a minha filha não se conformou e manteve a sua postura e ontem reafirmou, se um ignorante me chamar de preta, dou-lhe um soco para ele deixar de ser ignorante. Ri-me e disse para ela se acalmar.

Contudo, ontem, percebi o quanto tenho andado errada e como essa minha atitude de não ligar pode contribuir para normalizar comportamentos e atitudes puramente racistas.

Marega, o jogador de futebol, de um grande clu­be português, fartou-se de ouvir insultos racistas vindos do público e recusou-se a continuar a jogar num ambiente daqueles. Teve a coragem de sair do campo e de mostrar «preto no branco» que não admite nenhuma forma de racismo. Não se conteve, não ficou a espera do fim do jogo para se queixar, obrigou a que todos no estádio, nos sofás, em frente das Tvs, na net, no mundo inteiro fossem forçados a ter de lidar com este fenómeno do racismo. Quando ele se indignou e recusou a continuar, pôs em risco a sua carreira profissional, mas não teve medo! E não se comportou como um menino bem-educado e receoso. Não, afirmou-se como um Homem que assumiu que não tolera. E obrigou todo o mundo a reflectir no que estava a acontecer. Até à explosão de Marega, todos os que estavam a presenciar os insultos mantinham-se controlados. Não ligavam? Não se liga a ignorantes? Há-de passar?

Marega deu-me uma grande lição: não se pode calar e lidar tranquilamente com o racismo. Isso é a vitamina necessária para deixar crescer e alastrar o preconceito e a discriminação. A nossa tolerância com o intolerável está a fazer crescer os adeptos de forças políticas que propagam o racismo e mandam devolver à origem os portugueses com sangue africano. E neste ponto indago-me: quantos portugueses ficariam em Portugal depois dessa devolução?

Pois é, desde ontem que aprendi a lição. Não mais vou ignorar uma atitude racista, seja ela de que tipo for. E os nossos jovens devem ser preparados para lidar com esse fenómeno não no sentido de o normalizar, mas de o condenar e reprimir.

Daqui a dois anos, a minha filha seguirá o caminho que muitos jovens cabo-verdianos têm seguido ao longo dos tempo e irá estudar no estrangeiro. A vontade de conhecer novos mundos nasce com cada cabo-verdiano, não há como evitar (e evitar porquê?). Os jovens anseiam sair para mais tarde voltar. Voltar é também o destino que o cabo-verdiano não abre mão.

Como mãe, não posso deixar de me afligir. O mundo é grande e a maldade dos homens também é grande. Ela irá enfrentar esse mundo de gente maravilhosa e de gente diabólica. Tudo o que lhe estamos a ensinar deve ajudá-la a compreender as situações, a avaliar os perigos, a decidir pelo bem (confiamos, nós). Mas mesmo assim, não é suficiente para estar protegida. Um momento, num local errado, um confiar no próximo, e tudo pode acontecer.

Vivo com este temor desde que ela começou a reivindicar a sua autonomia e liberdade de ir e vir, de escolher. Não posso, nem quero (apesar de muitas vezes ter vontade) tolher a sua liberdade, quero que ela assuma responsabilidades e isso implica deixar decidir. Mas todas as vezes que ela sai do meu campo de acção, dá-me aquele frio na barriga, um quase ataque de ansiedade, devoro toda comida a minha volta (por isso é que mãe de adolescente engorda), mas deixo ir …. E rezo. Rezo para que ela não seja apanhada no meio de uma confusão, para que os jovens amigos saibam que ser amigo é também cuidar e protegerem-se uns aos outros, que não seja vítima de preconceito ou ódio.

Mas rezo, também, para que ela tenha coragem e sabedoria para lutar contra as injustiças, para não se conformar nem ignorar o que está mal e deve ser mudado. Rezo para que ela, como Mulher nunca se deixe intimidar por essa sua maravilhosa condição e que ser mulher e preta nunca seja por ela aceite como um obstáculo que outros lhe apresentem para impedi-la de ser, e se realizar como, Pessoa.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,24 fev 2020 9:40

Editado porSara Almeida  em  24 fev 2020 9:40

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