Revolta de Ribeirão Manuel: 110 anos no dia 12 de Novembro de 2020

PorEurídice Monteiro,27 fev 2020 8:41

O regime tinha mudado em Portugal, com a implantação da República a 5 de Outubro de 1910. O novo governador Arthur Marinha de Campos tomou posse no comando das ilhas no dia 14 de Novembro. Antes da tomada de posse, no dia 12 de Novembro, tinha-se iniciado a chamada Revolta de Ribeirão Manuel. Com o seu canhão de guerra, o governador Marinha de Campos aportou-se na Ribeira da Barca no dia 17 de Novembro, causando terror nos povoados de Santa Catarina.

Em Cabo Verde, as rela­ções de dominação colonial e exploração da terra desen­ca­dearam sucessivas revol­tas sociais no campo, nomeada­mente no interior da ilha de Santiago, sendo de rememorar pelo menos três: a Revolta dos Engenhos (1822), a Revolta de Achada Falcão (1841) e a Revolta de Ribeirão Manuel (1910). As mulheres participaram activa­mente nessas revoltas sociais. Numa dessas revoltas campesinas, elas ocuparam o centro das atenções e agitações. Trata-se da Revolta de Ribeirão Manuel, no ano de 1910. Foram as condições deploráveis de subsistência no campo que estiveram na origem da conhecida Revolta de Ribeirão Manuel.

Furto de purga! Essa foi a transgressão das camponesas, provocando ferimentos num dos guardas que tinha espancado uma delas. Tomando conhecimento de que um dos seus guardas havia sido ferido pelas mulheres que furtavam purga na propriedade da sua irmã, Sr. Aníbal dos Reis Borges ordenou os seus rendeiros para que atacassem a povoação onde as mulheres moravam. Os rendeiros não conseguiram dar conta do recado. Na sequência disso, Sr. Aníbal pediu auxílio à polícia rural. Antes do amanhecer, os soldados surpreenderam a povoação de Ribeirão Manuel, arrombaram as portas das casas e arrancaram as mulheres do leito para serem amarradas. Trinta e sete já estavam atadas e presas, quando o povo juntou-se, dando lugar a um combate entre os populares e a polícia rural. Os soldados foram gravemente feridos, tendo-se retirado em fúria da povoação. Os aldeões passaram-se de agredidos a agressores, tendo então decidido arrombar armazéns e saquear toda a purga que encontrassem. Desembocaram-se tumultos em diferentes povoados do concelho de Santa Catarina.

O regime tinha mudado em Portugal, com a implantação da República a 5 de Outubro de 1910. No dia 14 de Outubro de 1910, foi demitido o governador Ramalho Ortigão e, nesse mesmo dia, foi nomeado um outro para a província de Cabo Verde. O novo governador Arthur Marinha de Campos tomou posse no comando das ilhas no dia 14 de Novembro. Antes da tomada de posse, no dia 12 de Novembro, tinhase iniciado a chamada Revolta de Ribeirão Manuel. Com o seu canhão de guerra, o governador Marinha de Campos aportou-se na Ribeira da Barca no dia 17 de Novembro, causando terror nos povoados de Santa Catarina (cf. António Duarte da Graça [1912], Cabo Verde: Quatro Meses e Meio de uma Administração Ultramarina a Pontapés ou a Administração do Sr. Marinha de Campo; Eduardo Adilson Camilo Pereira [2013], Cultura e Polícia: As Revoltas).

Aparecem envolvidos nessa revolta: o nome do Sr. Aníbal dos Reis Borges como provocador da revolta, em defesa da propriedade da sua irmã Ana dos Reis Borges que teria sido assaltada pelas mulheres populares desesperadas diante da penúria desse tempo; o nome do Padre António Duarte da Graça como defensor das mulheres e indiciado como quem lhes teria aconselhado a protestarem-se; o nome do sargento Machado; o nome do Governador Marinha de Campos, que, logo após a sua apoteótica tomada de posse, na cidade da Praia, havia desembarcado no dia 17 de Novembro de 1910 no Porto de Ribeira da Barca, em direcção aos povoados de Santa Catarina, usando meios repressivos militares desproporcionais para calar a população revoltada; e o nome de Nha Ana Veiga como protagonista da revolta, líder campesina, num momento em que a população rural estava em marcha para a Prisão de Cruz Grande, onde algumas mulheres tinham sido feitas prisioneiras. Este e outros acontecimentos marcaram a desastrosa governação de Marinha de Campos que não durou mais do que quatro meses e meio, período esse envolto numa terrível tempestade.

O pinhão da purga é semelhante às nozes verdes e amarelas quando maduro, colhido de um arbusto de altura mediana que muito abundava na ilha de Santiago e noutras ilhas do arquipélago, como Fogo, Santo Antão e São Nicolau. Continha três sementinhas brancas oleaginosas de tamanho e forma de uma pequena cereja, protegidas por uma leve casca roxo-escura dura e quebradiça. As sementes eram destrinçadas entre si por uma membrana cortical que se reconhecia da parte externa grossa e dura através de distintos sulcos longitudinais e equidistantes. Crescia livremente nos campos de sequeiro e era especialmente utilizado na produção do azeite de purga para a iluminação caseira e do sabão de terra, que era feito a partir da cinza de purgueira.

Nas primeiras décadas do século XIX, tinha-se iniciado a exportação das sementinhas de purgueira para as indústrias europeias de saboaria. Isto tinha impulsionado a plantação de purgueira. Até à década de sessenta do século XX, as suas sementes eram o principal produto de exportação das ilhas de Cabo Verde, conforme realça António Carreira, em Estudos de Economia Cabo-verdiana. Embora não existisse um monopólio formal, nem privilégios de pessoas singulares ou grupos, ao povo sobrava apenas o apanho da purga. Tal actividade era reservada a menores e às mulheres, sendo que a falta de engenho para a moagem da purga implicava que as mulheres se encarregassem disso, moendo em pilão.

A bravura das mulheres do tempo das revoltas, incluindo a Revolta de Ribeirão Manuel, é o simbolismo indefectível das qualidades das mu­lheres do interior da ilha de Santiago. Numa região marcadamente agrícola, a própria história de resistência social tem sido representada por uma figura feminina, Nha Ana Veiga, uma das protagonistas da Revolta de Ribeirão Manuel. Deste modo, todavia, tem sido recriada, através de um fundo exótico e de uma mitificação essencialista, a imagem da designada «mulher do machado» (Jean-Yves Loude [1999], Cabo Verde: Notas Atlânticas. Lisboa: Europa- -América, 76-88), ganhando uma maior aclamação e um reconhecimento com a composição musical de Pantera que, numa perspectiva memorialista, procurou retractar o protagonismo das mulheres numa das mais conhecidas revoltas sociais decorridas no mundo rural santiaguense.

No seu estilo singular salpicado de ironia mordaz e erótico, Pantera reforçou o quadro folclórico da Revolta de Ribeirão Manuel: «Na 1910 mosinhus/ Raboita di Rubon Manel/ Dja es leba nos mudjei, dja es prendi nha genti / Pamo kel un dos gran di purga [...]» (Raboita di Rubon Manel, Orlando Pantera). Celebremos, então, os 110 anos da Revolta de Ribeirão Manuel no dia 12 de Novembro deste ano de 2020.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020.  

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Autoria:Eurídice Monteiro,27 fev 2020 8:41

Editado porSara Almeida  em  22 nov 2020 23:21

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