Mãe crioula, mulher orgulhosamente só

PorEurídice Monteiro,9 mar 2020 8:47

A situação de pobreza e carência em que vive a mãe crioula não se resume à relação de desigualdade que persiste na distribuição de recursos entre homens e mulheres, mas também prende-se com o défice de assunção das responsabilidades parentais (mormente financeiras) por parte do pai crioulo. Isto significa que, além de ter acesso a menos recursos, são os rendimentos que a mulher ganha, debaixo do lume de sol, que cobrem as despesas de sustento, educação e lazer dos filhos.

Uma vez fui a um funeral em Achadinha, daqueles funerais que a gente não pode abster-se de comparecer, por se tratar de parente de um amigo e colega de profissão. No meio do funeral, onde todas as pessoas se mostravam socialmente pesarosas debaixo das lentes grossas dos óculos escuros e os filhos e parentes mais chegados evidenciavam sinais de cansaço, apesar do desconsolo nessa hora de dor, de repente vi um puto e outro mais moço a chorarem afincada e desalmadamente. Disseram-me logo que eram netos da defunta. Anuí com a cabeça que os netos amam demais os seus avós. Um dos tios acotovelou-me e disse de chofre: «pois, a partir de agora, já não têm três por dia. A avó se foi!»

Esta é, de facto, uma realidade ainda recorrente nas ilhas de Cabo Verde e em muitas outras sociedades crioulas pelo mundo fora. É sabido que, mesmo nos dias de hoje, um grande número de crianças cabo-verdianas cresce em lares dos avós, principalmente dos avós do lado materno. Isto se deve sobretudo à situação de precaridade decorrente da maternidade/paternidade em tenra idade, como também por causa das migrações internas (entre ilhas e do campo para a cidade) e da emigração que têm vindo a atingir de todas as formas a já frágil estrutura familiar na sociedade cabo-verdiana.

No que se refere à precariedade da progenitora, há pistas e evidências que ajudam a ilustrar que, de certa maneira, a situação de pobreza e carência em que vive a mãe crioula não se resume à relação de desigualdade que persiste na distribuição de recursos entre homens e mulheres, mas também prende-se com o défice de assunção das responsabilidades parentais (mormente financeiras) por parte do pai crioulo. Isto significa que, além de ter acesso a menos recursos, são os rendimentos que a mulher ganha, debaixo do lume de sol, que cobrem as despesas de sustento, educação e lazer dos filhos.

Não é por acaso que os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres existem uma elevadíssima concentração da pobreza. É por isso que o rosto da pobreza é representado por uma «mãe-solteira» (expressão essa que tende a ser substituída no Brasil pela designação de «mãe solo», uma vez que se entende que a maternidade não se define pela condição civil da progenitora).

E frequentemente, por decisão pessoal ou aconselhamento familiar, muitas mães acabam por entrar em novas relações à procura de alguém que as ajudem a pagar as contas. Esta prática tornou-se socialmente aceite e incentivada. É uma prática histórica corriqueira e normalizada, a tal ponto de não ser raro encontrar caso de pai crioulo que nem se importa que os seus filhos sejam sustentados por outro homem, novo parceiro da mãe crioula. Não é vergonha social para o homem pai que relegou as suas funções paternais para outro, nem é vergonha para a mãe crioula que encontrou outro alguém com quem suportar os encargos da vida, nem é vergonha para essa terceira pessoa que passa a ganhar o direito de exigir que a mulher lhe dê seus próprios filhos. A mãe crioula entra assim num ciclo vicioso, na medida em que é recorrente que, de cada nova união, resulte novos filhos.

Existem hoje vários estudos que mostram essa configuração histórica das relações de poder na estrutura familiar em Cabo Verde, remontando à era da escravatura, onde houve um intenso contacto racial e cultural entre os senhores e as escravas. A historiadora Elisa Andrade é da opinião de que isto teria consagrado menos por causa de um «eventual espírito multirracial que caracterizaria fundamentalmente o colono português» do que devido às «necessidades fundamentais que uniam os dois sexos, em circunstâncias que as mulheres brancas escasseavam». Donde, segundo a autora, a conformação de uma interligação complexa entre a dominação colonial e a dominação sexual das mulheres negras, submetidas largamente ao concubinato. A permissividade e promiscuidade sexual da instituição escravocrata e o estilo de vida senhorial da época teriam tido forte impacto no tecido social cabo-verdiano, perdurando no tempo.

De acordo com António Carreira, «as uniões de homem branco e mulher preta foram, pois, correntes e socialmente aceites de forma geral. Não se olhava à função ou cargo que ele desempenhava. Daí o surto de inúmeros descendentes bastardos de capitães-mores, de governadores, de altos funcionários régios, de ministros da Igreja, etc.» Por esta razão, Carreira considera que a poligamia de facto instituída nas ilhas deve-se mais ao comportamento do senhor escravocrata do que da herança de poligamia do escravo negro, uma vez que o escravo não era livre para andar com quantas mulheres quisesse. Entretanto, Carreira tem a consciência de que «esse comportamento era, naturalmente, imitado pelos escravos e pelos libertos [...]. A mãe-solteira [...] ficou consagrada como realidade sociológica [...]. Pode dizer-se que existe uma poligamia de facto, que não de direito.»

Ainda o historiador António Correia e Silva reconhece que, em relação à população escrava, «predominavam as uniões livres e de facto, sem qualquer reconhecimento da Igreja.» Segundo o autor, tudo indicaria que na vida prática «as uniões de escravos não só apresentavam um deficit de institucionalização, como também se afiguravam pouco estáveis. Por isso, a célula familiar básica entre os escravos era constituída pela mãe e pelos filhos, sendo o homem variável e marginal.» E, sendo assim, «o que figura no registo histórico como unidade familiar identificável e reconhecida é o grupo mãe-filhos. A leitura da descendência entre os escravos faz-se apenas pela linha feminina, contrastando com a filiação acentuadamente patrilinear das famílias dos terratenentes.» Portanto, tratariam de «famílias matricêntricas, nas quais a presença do pai é ténue quando não inexistente: ‘mater certa, pater incertus’.»

É este o dilema que ainda hoje persiste em Cabo Verde. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,9 mar 2020 8:47

Editado porSara Almeida  em  4 dez 2020 23:21

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