A minha prima Dodó

PorSónia Morais,13 mai 2020 7:09

Início dos anos 90 do século passado. Subi as escadas do nº 191 da Av. António Augusto de Aguiar, à Praça de Espanha, como a gente dizia aos táxis. Toquei à campainha do primeiro andar e uma empregada gorducha e muito branca entreabriu a porta e olhou-me de cima a baixo com olhar desconfiado, o que deseja? A dona Dodó está? Ela olhou-me espantada e ainda mais desconfiada e atirou, a senhora morreu!

Fiquei estarrecida mas ainda consegui balbuciar, eu sou prima dela, posso falar com alguém? Não está cá ninguém, diz-me a bruta, a esta altura eu já tinha decidido que ela era do “Leste”, e bateu-me com a porta na cara. Sentei-me nas escadas com as pernas bambas e lá fiquei largos minutos a chorar perdidamente. Acabara de perder um belo pedaço do meu passado e, definitivamente, a nossa prima rica.

Conheci a prima Dodó desde sempre. Prima-irmã da minha mãe, era filha de Manuel de Oliveira Teixeira, tio Lela, um meio-irmão da minha avó Gegé, nascido em Santo Antão, que foi mandado para o continente no início do século XX para estudar Medicina, ficou por lá e casou com uma alentejana rica, herdeira de um latifúndio, pinhais, criação de animais, etc. Nunca mais voltou a Cabo Verde a não ser uma vez, algures nos anos trinta, em que trouxe a mulher e a filha para conhecerem a ilha onde nasceu. Na volta levaram a sobrinha Graciete, de saúde frágil, que viveu com eles por alguns anos. Tio Lela exerceu medicina em terras de Azeitão, onde calculo que tenha sido uma espécie de João Semana, a julgar pelo busto que lhe foi erigido numa praça de Vila Fresca, onde tinha a sua casa. O busto ainda lá está, foi reinaugurado numa praceta requalificada há dois anos atrás.

Quando fui estudar, eu e o Bau tínhamos quarto em casa da minha avó Gegé que por essa altura morava com a filha Graciete, funcionária pública na situação de evacuada. Moravam na rua Actor Vale, ao cimo da Alameda Afonso Henriques que nos ficava muito a jeito pois era perto do Técnico, onde ambos estudávamos. Prima Dodó era visita frequente lá de casa e eu era visita frequente da casa dela. Costumava ir visitá-la à hora do lanche, ficava à conversa com a filha mais nova que era da minha idade, a Mitê, assim com o ê fechado que era como a gente “bem” pronunciava, jantava e muitas vezes até dormia. Fiquei perita nas frescuras de ricos, os jantares cheios de etiqueta, vários talheres e copos, vinhos para cada prato. Nesse tempo, era chique e certamente mais barato, mandar vir criadas do “ultramar” e não poucas vezes a minha mãe serviu de intermediária para enviar uma “boa criada” para a Dodó. A própria Dodó contava depois algumas anedotas deliciosas sobre as coitadas que de repente se viam completamente deslocadas nesse meio, houve uma que foi passear os cães e depois de um pedaço na rua, voltou pra casa e declarou: “cansei e trouxe os cãos”! Numa ocasião, já o Jopam tinha vindo para Lisboa, depois das perturbações académicas de Coimbra em 69, fomos convidados para jantar, se não estou em erro seria Natal ou Páscoa. Eu estava assustadíssima com o que podia de lá sair, nem um pio sobre as actividades estudantis, não se fala em política, fui avisando, sabes como eles são ultra-reaccionários e fascistas. O primo Caetano era um doce de criatura, adorava a família da mulher, bonacheirão e conversador, sempre a contar histórias, andava todo empolgado com a forma como o governo salazarista estava a dar cabo dos terroristas, eu olhava para o Jopam com os olhos grilidos e via o sangue a subir-lhe à cara e disfarçava um ligeiro e suplicante não com a cabeça, ia logo mudando de assunto. E o que dizer do serviço de mesa, olha sempre para o que faço primeiro, talheres, copos, guardanapos. Mas o que eu não estava à espera era dos espargos servidos como entrada, vi o Jopam puxar dos talheres de peixe para atacar, olhei para ele furiosamente e comecei a comer com as mãos, aliás com dois dedos espetados que é como se comem os espargos, depois de os passar delicadamente por um molho sei lá de quê. Nesse meio tempo, já os empregados tinham colocado, ao lado dos copos, uma tacinha de água morna. Volto a grilir os olhos em direcção ao Jopam e antes que ele se lembrasse de levar a taça à boca, meto os meus dedinhos dentro da taça e certifico-me de que ele faz o mesmo. O martírio continuou até ao fim do jantar, o Caetano continuava alegremente a bater na tecla dos terroristas. Nem posso imaginar o que seria se em algum momento lhe passasse pela cabeça que tinha à sua mesa um ilustre militante do PAIGC na clandestinidade! Felizmente, nessa altura, nem eu sabia disso. Quando finalmente saímos Jopam, furioso e quase a ter um ataque, declarou solenemente, nunca mais ponho cá os pés! Tomara ele soubesse…

A tia Graciete, depois de anos a fazer toda a espécie de tratamentos inadequados para a sua misteriosa doença, que incluíram até choques eléctricos no Hospital Júlio de Matos, fora finalmente diagnosticada com esclerose em placas, pelo Dr. Baptista de Sousa, sim o nosso, médico no Hospital do Ultramar, hoje Egas Moniz. Tarde demais para qualquer chance de cura. A doença progrediu de forma galopante, em pouco tempo foi internada e da última vez que a vi quase não falava, percebi que estava por pouco. No dia seguinte telefonaram do hospital fui atender e ouço esta frase, da forma mais brutal e estúpida possível, é para dizer que tragam a roupa porque a senhora morreu esta noite. Desliguei o telefone, saí de casa a correr e fui sentar-me num banco da Alameda, aos soluços. Como iria eu com 18 aninhos gerir uma situação dessas, como dizer a dois velhotes que tinham acabado de perder a filha que era o seu suporte? Fui a uma cabine telefónica e dei a notícia à prima Dodó da mesma forma brutal como ma tinham dado. Ela ficou desorientada, Graciete era uma irmã para ela. O que faço? berrava eu, não sou capaz de dizer nada aos avós. Fingi que tinha aulas, desapareci por algumas horas e quando voltei para casa lá estavam a Dodó e o Caetano, situação sob controle, tudo tratado para o funeral. Às vezes penso que a forma como a “leste” me deu a notícia da morte da prima Dodó foi uma desforra do destino pela forma como eu lhe dei a ela a notícia da minha tia Graciete, trinta anos antes.

No dia 1 de Maio de 69 meu irmão Jorge foi apanhado num arrastão da polícia, em plena manifestação no Rossio, preso e envido para Caxias. Jopam veio de Coimbra e começamos a mexer cordelinhos e, entre outros parentes e conhecidos, o primo Caetano foi metido ao barulho. Não sei bem qual foi o seu papel porque, talvez para protecção da minha saúde mental, deu-me uma branca e varri da memória quase todas as ocorrências relacionadas com esse período negro para a nossa família. O certo mesmo é que quando o Bau saiu de Caxias tinha desencadeado uma esquizofrenia que o inutilizou para a vida toda.

Depois da morte da Tia Graciete os avós foram para Moçambique ficar com os quatro filhos que por lá viviam, eu e o Bau alugamos quartos na Praça Pasteur. Caetano foi novamente chamado para dar referências, da mesma forma que foi nosso fiador quando alugámos um apartamento na zona de Alvalade, de onde nunca mais saímos. Tivemos o azar de ter uma vizinha que durante os primeiros anos nos infernizou a vida, e nós a ela, o senhorio, que nutria grande deferência pelo primo Caetano e passou a ser nosso “primo Plácido”, teve de intervir várias vezes em nossa defesa. O raio da mulher era casada com um monhé, preto mas se julgando branco, por azar dela lá em casa nós éramos todos brancos mas recebíamos montes de amigos de todos países e cores (nós somos todos daltónicos) angolanos, moçambicanos, tugas, brasileiros, guineenses, enfim… sem falar dos cabo-verdianos. Numa segunda leva de moradores tivemos até uma chinesa moçambicana. Convenhamos que éramos uma vizinhança barulhenta. As coisas só serenaram depois do 25 de Abril, quando passámos a ter frequentemente à porta de casa um Citroen boca-de-sapo preto, posto à disposição de um dos vários amigos nossos que faziam parte das delegações do PAICG que por essa altura estavam em negociações com o governo português para a independência dos nossos países. A vizinha calou o bico e recolheu-se à sua insignificância. Os tempos eram outros…

Por essa altura, no IST como em toda a Academia de Lisboa ferviam as RGA’s e os comícios, que mais tarde descobri serem organizados pela UEC, várias invasões da polícia e da PIDE, muita correria pelas ruas à volta do Técnico e da Cantina Universitária sentindo bem perto a respiração dos cães polícias. Nos intervalos eu continuava indo visitar a prima Dodó, com a minha melhor cara de inocente, papando uns belos jantares e, principalmente nas férias da Páscoa, uns maravilhosos dias na mansão de Azeitão que incluíam sempre fins-de-semana na casa de praia no Portinho da Arrábida, eu e a Mitê a apanhar sol a bordo do iate, quais celebridades, enquanto o Caetano velejava todo feliz por mar lindíssimo. Vida de burguês é sabe, definitivamente.

Terminei o curso, regressei a Cabo Verde, continuei a ir visitar a prima Dodó sempre que ia a Lisboa, em serviço ou em férias. Tudo na mesma, talvez menos empregados, Mitê casou, o Caetano morreu, mas ela sempre radiosa e simpática. Em dada ocasião encontrei lá a filha mais velha que tinha regressado do Brasil para onde fugiu/emigrou depois do 25 de Abril. O que fazes, pergunta-me ela, eu sou engenheira, vivo em Cabo Verde. Cabo Verde? que horror!! responde, com cara enojada. Nunca mais a vi, aliás nunca mais vi nenhum dos filhos, nem me interessam. Ficam-me as belas recordações da Dodó e do Caetano. Eram ricos, boa gente, família, e fizeram parte de um dos melhores períodos da minha vida.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 962 de 6 de Maio de 2020. 

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Autoria:Sónia Morais,13 mai 2020 7:09

Editado porSara Almeida  em  13 mai 2020 7:09

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