Luta contra endemias e pandemias

PorEurídice Monteiro,19 mai 2020 7:21

Durante a campanha nacional de erradicação da malária do arquipélago, o meu avô esteve na linha da frente no combate à endemia no interior da ilha de Santiago. Corriam os anos sessenta, o meu avô tinha trinta e tal anos. Foi escalado para a frente de combate e, em pouco tempo, ganhou a alcunha de Raul-de-Missão, pois era uma missão enfrentar àquela endemia.

Deram-lhe uma mula para se servir de meio de transporte rural. Mula tinha uma boa capacidade de resistência no interior agreste de Santiago e não impunha as vaidades nutricionais de um cavalo. Na sua mula, o meu avô foi percorrendo longas distâncias escarpadas, durante dias que começavam de madrugada e noites de breu. Conheceu todas as aldeiazinhas da então freguesia de São Miguel Arcanjo que, na época, ainda pertencia ao concelho de Santo Amaro de Abade. Namoriscava aqui e ali, mas, como o próprio indultava, nunca fez filho fora do casamento. Salvo seja! Era isso a versão dele, uma galopante história de aventura, muito masculina, brava, que enchia de adrenalina e romantismo as minhas fantasias de infância. Caminhos traiçoeiros, lajedos, precipícios, noites escuras, sons estranhos, lugares dibjaku (mal-assombrados), almas doutro mundo, grunhidos do mar.

Muitas vezes, o meu avô contava casos de homens de barba rija que sequer ousavam atravessar a Fonte Bedja que era rodeada por uma densa florestação de canavial à descida da Igreja Matriz na direcção da Veneza, quanto mais passar a Ponta Verde onde ficava o cemitério local ou, pelo sentido inverso, ir além da ponte de Kayetona que era ombreada pela extensa praia abarrotada de areia negra reluzente e a grande ribeira que vinha desde Flamengos. Outros tempos. Cresci à sombra destas e de outras histórias.

Foi, por causa da campanha contra endemias, que ele mudou com a família inteira de Assomada para se instalar definitivamente no porto da Calheta de São Miguel. O meu avô contava que, naquele tempo em que Cabo Verde lutava para a erradicação da malária, percorreu cutelos e ribeiras do interior mais profundo da ilha de Santiago, fazendo a colheita da amostra de sangue na ponta do dedo anelar dos adultos ou no dedão das crianças. Conservava com o devido cuidado e enviava para a capital, cidade da Praia, com o propósito de serem submetidos a exames laboratoriais de parasitologia humana.

Para além do meu avô, havia a brigada de desinfestação, que ficou com a alcunha de homens-da-bomba que, como tudo indica, faziam bombagem, usando insecticidas, especialmente o pesticida DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano), para a desinfestação de poços, charcos e casas, de modo a exterminar mosquitos, pulgas, pulguinhas, piolhos e dabius que faziam parte do quotidiano das pessoas. Os poços eram viveiros de mosquitos. Deitavam unidades de peixes gambúsias para pôr fim às larvas de mosquitos. O meu avô dizia que pulguinhas (cientificamente designados por pulex) atormentaram muita gente nos vales com muita água e nas zonas de criação de porcos. As pessoas ficavam com os pés deformados, o que lhes fazia andarem arqueadas. Havia também o que popularmente se designava por dabuis, que aninhavam nos colchões de antigamente feitos com palhas de milho e que encrostavam na pele das pessoas como carrapatos nos cães. Tempos difíceis. Naquela situação miserável em que o comum dos mortais vivia, a higiene pessoal e pública também não ajudava. As pessoas viviam com os bichos ou como os bichos. Era preciso separar as pessoas dos bichos. Era preciso dignificar e humanizar o povo do interior da ilha. Foi uma campanha sanitária ainda no período colonial.

Conheci essa história na versão da minha família. Entretanto, alguém me adiantou que havia um Centro de Endemias, sob a direcção do Dr. Manuel Meira, de boa memória, que teria feito um excelente trabalho de combate às endemias em todo o país, principalmente nas ilhas que eram viveiros de mosquitos (Santiago e Sal). Que teria também sido útil em Santa Cruz nos anos de 1950 e 1960. A luta contra malária foi praticamente ganha nos anos setenta. E já há bastante tempo que Cabo Verde se tornou um dos poucos países africanos livres da malária, com um ou outro caso ocasional.

Passado todo esse tempo de luta contra endemias, o mundo inteiro está a braços com um problema gigante. A pandemia da Covid-19 tem afectado todos os países, quer no plano sanitário, quer nos domínios económicos e sociais. Ainda não há vacina. Contudo, o presidente do Madagáscar, Andry Nirina Rajoelina, anunciou o tradicional chá de Artemísia Annua (losna, como é conhecida em Cabo Verde, uma planta endémica das ilhas de Santo Antão, Santiago e Fogo). Artemísia annua é utilizada no tratamento contra a malária e agora surge como o remédio santo para curar a doença de Covid-19. A losna é também conhecida como absinto, erva-do-fel, ou erva-dos-vermes. É utilizada para curar a febre e contra vermes.

Testemunham que, sem sombra de dúvidas, o Covid-Organics, antídoto preparado naquele país, dá resultados em sete dias. Até estão a surgir especulações sobre o número de países e instituições que teriam já reconhecido a invenção do Madagáscar como um dos remédios contra a Covid-19. Em conclusão, numa altura em que o mundo está de olhos postos e à espera de soluções europeias, americanas ou, quanto menos, asiáticas, eis que aparece o suplemento africano. A losna. O que todo o mundo já sabia é que a biodiversidade inesgotável de África tem sido um reservatório natural na indústria farmacêutica.

Quiçá o hilariante exemplo de Madagascar será um alerta sobre o significado e o potencial da diversidade biológica ameaçada há décadas. Uma política verde e luta contra alterações climáticas têm sido discutidas ad nauseam sem se aterrar acções específicas. O DDT usado nos anos 1960 e 1970 como a salvação divina, é hoje banido como dos piores venenos para bichos e natureza, testemunho de que soluções químicas nem sempre são sustentáveis. Não há motivos para negligenciar a ciência médica, mas é preciso reconhecer que a natureza pode nos retribuir muito se cuidarmos dela.

Antes de me hibernar nesta quarentena, fui ao mercado do Plateau e vi lá na banca de uma dona muito velha que costuma vender folhas de chás, skontra e garrafinhas de ramedi-terra. Perguntei o que era aquilo e ela disse-me que era losna, comummente usado no país para o tratamento de doenças de madre, fígado, rins, gripe, cólicas ou dores de dentes. Como não padeço de nada disso, comprei apenas hortelã e alecrim. Ai se eu soubesse, teria trazido um feixe de losna. Por via das dúvidas... pois, nunca se sabe! 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 963 de 13 de Maio de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,19 mai 2020 7:21

Editado porSara Almeida  em  19 mai 2020 7:21

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