Com sua sabedoria, imparcialidade e espírito conciliador, desfazia as inimizades e conquistava o respeito até dos que perdiam as causas. A defesa intransigente dos injustiçados e dos necessitados deu-lhe o título de advogado dos pobres.
Os advogados de Cabo Verde também escolheram Santo Ivo como seu padroeiro e instituíram o dia 19 de Maio (dia da morte de Santo Ivo), como o dia nacional do advogado. Esta data tem sido ao longo dos anos, desde da criação da Ordem dos Advogados de Cabo Verde (OACV), celebrada com atividades de divulgação dos direitos dos cidadãos para além da confraternização habitual entre os advogados. Como tudo o resto nas nossas vidas, este ano nada pode ser como dantes e a data será assinalada com uma conferência online. E também nisto, só nos apercebemos e valoramos o que não podemos ter. Pois é, não haverá convívio de advogados. Não teremos um jantar cheio de jovens advogados, alguns com dotes artísticos de excelência, não haverá uma mesa onde a velha guarda se acaba por juntar para recordar como era no princípio e contar partes de colegas que já partiram fisicamente mas que serão sempre referidos quando se falar da advocacia em Cabo Verde. Quem pode esquecer as peças processuais e as tiradas de André Afonso? E nós que convivemos com Armindo Figueiredo, um gentleman da advocacia, enfim… quando nós os mais velhos nos juntávamos, com orgulho renovávamos o nosso espírito e o nosso compromisso com a profissão que escolhemos.
E é desta profissão que quero falar nesta crónica. Ser Advogado é uma escolha possível só para aqueles que não conseguem viver sem buscar a justiça, que são capazes de se esquecer de si próprios para assumirem a defesa dos que já ninguém lhes quer dar uma chance, dos já definitivamente condenados no tribunal da opinião pública, dos sem dinheiro e dos que nos consomem totalmente. Sim, Ser Advogado é uma profissão de alto risco! Corremos o risco de não nos importarmos com a nossa vida, com o nosso bem-estar, porque há um ser humano, uma causa, um ideal que exige toda a nossa atenção, competência e tempo.
Para ser Advogado não basta ter uma licenciatura em Direito, não basta fazer um estágio e ingressar na ordem profissional. Ser Advogado é muito mais do que isso. É um compromisso que dura toda a vida profissional e se impõe 24 horas por dia e para o qual não podemos ter reservas. Se o direito de alguém está em causa, como ter reservas? Como não abrir a porta ou desligar o telefone, quando no meio da madrugada somos chamados para ir a uma esquadra atender uma pessoa que precisa de um advogado? Como continuar calmo e sereno quando o cliente só grita e diz disparates, mas a experiência e a sensibilidade faz-nos perceber que ele precisa desse momento para depois escutar a palavra do advogado que explica que está errado e que tem de agir de forma diferente. Ser Advogado é também ser confessor, psicólogo, mãe (como uma vez um advogado me disse).
Imagino que já estão a pensar que isto é uma visão idílica do advogado e que os advogados não são nada disto, são sim uns bons interesseiros com habilidade para puxar a lei para a sua sardinha e o que lhes importa é quem paga mais, não têm escrúpulos e venderam a alma ao diabo. Infelizmente, há muitas pessoas com título para exercer a advocacia, mas sem alma de Advogado. A advocacia também se tornou um negócio e num mundo em que o cifrão manda, os bons advogados são os que estão em escritório de luxo, só vestem roupas de marcas, não mexem uma palha sem receber adiantado e têm sempre uns estagiários ou juniores para receberem as pessoas consideradas menos importantes. Porém, não é essa a realidade que caracteriza a figura do Advogado. Costumo dizer que, quando uma pessoa precisa mesmo de um Advogado para defender a sua liberdade, o seu nome, ou o seu negócio, quer mesmo é um Advogado, esse profissional capaz de se dedicar, trabalhar e com competência técnica, no qual possa confiar e ter a certeza de que não se vai vender ao adversário.
A independência económica é importante para manter a liberdade profissional, mas também não se alcança essa independência económica quando se abre mão da liberdade. E num país como Cabo Verde, onde a economia é ainda tão dependente do Estado, a única forma de nunca se ficar dependente é ter-se a coragem moral de se manter fiel à ética e à deontologia da profissão. Essa atitude de dignidade pode fazer perder avenças, contratos públicos, dificultar a obtenção da decisão administrativa, mas não escraviza e permite que a competência e a confiança elevem o nome do Advogado no mercado e lhe garantam o sustento e a melhoria de vida. Dá mais trabalho, sim, exige sacrifícios, muitos, mas perdura para sempre.
Como disse o Advogado Máximo Dias, em representação da Ordem dos Advogados de Moçambique, na cerimónia de investidura dos novos órgãos da OACV (2001), «Nem o dinheiro, nem o poder nos deve vacilar na busca da Liberdade, Justiça e Paz».
O mundo é complexo, as sociedades e a sua organização transmutam-se rapidamente, e o direito tem de ter sempre uma solução para todas as questões, conflitos e situações. Os computadores estão cada vez mais sofisticados e programados e muitos acreditam que substituem eficazmente os serviços prestados pelos advogados. Há dias, um empresário dizia-me isso: Dra., eu quando preciso de um contrato vou ao Google e encontro. Não gasto dinheiro com advogados. Eu sorri e entreguei-lhe o meu cartão dizendo: faz muito bem, mas se precisar de alguma coisa pode ligar-me. Terei todo prazer em ajudar. Claro, que não demorou a ligar, pois o contrato de arrendamento tão bonitinho que tinha retirado do Google e assinado com um arrendatário não contemplava uma situação que tinha surgido e corria o risco de ficar prejudicado!
É verdade que as novas tecnologias ajudam muito no exercício da advocacia, na prestação de serviços jurídicos, mas não conseguem substituir um Advogado. O computador pode ser programado com todo o conhecimento disponível, podem até incluir técnicas de pensamento humano, mas não incluem a alma, a alma do Advogado. E a solução ditada pelo computador até pode, e certamente estará, de acordo com a lei, mas pode não servir na situação concreta da pessoa, da empresa, porque, apesar de legal, poderá, por exemplo, ter um resultado mau na sua imagem! Ora o Advogado que estuda, que se atualiza permanentemente, que acompanha o que se passa na sociedade, que percebe o que é valorizado pelas pessoas, consegue aconselhar tendo em conta todos estes aspetos e, consequentemente, a solução que apresentar será mais justa, mas eficaz, mais acertada. A inteligência artificial é uma ferramenta, hoje, imprescindível, que liberta tempo para refletir e analisar, serve para aprimorar e tornar a prestação de serviços mais competitiva, mas não substitui o Advogado ou o Juiz.
Um outro elemento que também tem afetado muito o exercício do trabalho do Advogado, são as redes sociais, esse espaço infinito de democratização da opinião. Ser advogado em qualquer tipo de processo judicial, seja ele criminal ou civil, ligado à política, economia ou futebol, expõe o advogado e conota-o, para o bem e para o mal, como extensão, como o outro lado da mesma moeda, que é o cliente suspeito ou arguido no processo. O advogado passa a ser tratado como criminoso e sobre ele recaem todas as opiniões negativas amplamente divulgadas, não só na internet, mas, muitas vezes, repetidas nos órgãos de comunicação social tradicionais que hoje têm como suas fontes o FB, Twitter, and so on! E isto é simplesmente injusto e incorreto. Sendo consagrado em todas as constituições dos países democráticos e nos principais documentos internacionais de direitos humanos, o direito de toda a pessoa ser representada por um advogado como elemento fundamental do direito à defesa, o advogado defende o direito do seu cliente a ter um processo justo, não defende o crime ou o ato ilegal praticado pelo seu cliente. Da mesma forma que é incorreto dizer que o advogado também é criminoso porque os seus honorários são pagos com dinheiro da atividade ilícita do cliente. Por esta ordem de ideias, então o Estado também seria agente de um crime, pois os rendimentos provenientes de atividade ilegal também estão sujeitos à tributação fiscal! E o médico que tratou, o padeiro que vendeu o pão, o cabeleireiro, enfim… todos os que foram pagos por prestações de serviços ao acusado de um crime de proveniência ilícita de rendimentos seriam igualmente criminosos. Que absurdo!
Não posso deixar de recordar o Dr. Vieira Lopes, falecido há dias. Foi ele o grande mentor de uma Ordem dos Advogados Livre e Independente, formada de membros investidos de nobreza moral e verdadeiros amantes da Justiça. Este Advogado que arduamente trabalhou para a OACV nos seus primeiros anos, sendo um dos principais apoiantes contra todas as tentativas do poder político de reduzir a importância e o papel desta instituição, que abriu os caminhos para a sua internacionalização e acesso às organizações internacionais de advogados, acabou, infelizmente, no final do primeiro mandato (2004) por se zangar com a sua Ordem e virar-lhe as costas. Mas os seus ensinamentos permaneceram e serão sempre recordados. Ficam aqui as suas palavras finais na Oração da Luz que me dirigiu aquando da minha investidura como Bastonária da OACV: «A ORDEM DOS ADVOGADOS é o Templo Interior e Exterior da ADVOCACIA: uma Classe que se guia pelos rectos caminhos da lealdade, que abjura os atalhos clandestinos da avidez materialista; que pugna contra as aventuras da ignorância, contra a frouxidão de escrúpulos e luta, incansável, pela aristocracia de uma profissão que só como uma aristocracia moral, de arte e de ciência, pode ser vivida e exercida, na defesa do Direito, na realização da Justiça».
Feliz dia dos Advogados.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.