Rua d’Lisboa e eu

PorCÉSAR ISABEL DA CRUZ,5 jun 2020 7:39

Rua d’Lisboa e eu nos conhecemos desde criancinha, não sei precisar exactamente desde quando. Eu sou de Santo Antão. Mas, sabem, os faluchos, as as-secas, e as as-águas, trançaram gente de S. Antão com S. Vicente, que às vezes fica difícil destrinçar, quando é que se é de uma ilha, e quando é que se é da outra.

Mari Candinha e Nho Lelona moravam na Rua d’Lisboa, no primeiro andar direito do prédio cujo rés-do-chão direito a Drogaria do Leão usa como armazém e mostruário. O rés-do-chão esquerdo é ocupado por uma loja chinesa, que sucedeu ao Minimercado JBC. Nesse espaço, funcionava à época a Casa Metrópole, onde trabalhava o “metropolitano” Azeitona, homem “barulhento” e popular, que, para mim, era o dono da loja. Mas Aristides de JBC disse-me que não, Azeitona era só empregado. A loja era do Sr. Grais, e tinha sido em tempos a loja de DJô Fei. No primeiro andar esquerdo, moravam o Sr. Olavo Cardoso e família. O edifício, conhecido como "Casa dos Rendall", é um dos mais antigos da rua, e pertenceu, desde o início, à família Rendall, de que foram os primeiros membros em S. Vicente, George Rendall, e John Rendall, cônsul inglês.

Não me lembro de alguma vez ter visto o Sr. Olavo Cardoso, nas minhas idas e vindas a casa de Mari Candinha. Gente de Morada não é como gente de fralda, com a porta sempre escancarada, a invadir a casa uns aos outros, ora vai um, ora vem o outro, a pedir emprestado czinha de sal e czinha de "sabóla", ou pau de fósforo, para pegar lume. Só vim a conhecer o Sr. Olavo nos inícios da década de oitenta, por motivos profissionais, quando ele era Director da DREC do BCV. Mas já ouvira falar dele. Digamos que já o conhecia de nome. Eu era amigo de família do pai dele, Sr. Ney Cardoso, filho do poeta Pedro Cardoso. Fui introduzido na família pelo meu amigo e colega de trabalho, no Hotel Praia-Mar, José Áfro Faria Monteiro Cardoso. Áfro é irmão do Sr. Olavo, e também filho do Sr. Ney. De modo que, eu e o Sr. Olavo Cardoso passámos a ser, não só conhecidos como também amigos.

Um terraço, nas traseiras da casa, dava acesso ao Canalin de Luso-Africana, por uma estreita escada de cimento. Desse canalin tinha-se acesso ao quintal da casa onde Maria Luiza vivia com a mãe, numa renca de casas antigas, de piso térreo, cobertas de telha de madeira. Nesse sítio fica hoje o “Colombin”. Maria Luiza vendia em casa, pão de trança com doce, sucrinha, e aquelas coisas de venda d’balói. Quando havia movimento de gente a embarcar ou a desembarcar no cais d’Alfândega, ela ia para lá vender com o seu balaio. O cabo-do-mar ia a bordo, de bote, desembaraçar o navio, e só então os passageiros podiam descer para os botes que traziam a gente para o cais. Os navios ficavam fundeados ao largo. Eu cheguei a desembarcar assim, no cais d’Alfândega. O cabo-do-mar parecia uma garça branca, assim trajado, todo de branco, dos pés à cabeça. Maria Luiza era muito minha amiga. Dela eu não precisava comprar nada. Se bem que, criança não tinha dinheiro. Às vezes me dá uma saudade de Maria Luiza ... saudades de menino, saudades de infância. Ela deve ter seguido a sina de muitos cabo-verdianos, e embarcado para esse mundo fora.

Casa de Mari Candinha era a embaixada dos parentes de S. Antão residentes em S. Vicente, ou de visita à ilha. Para além da natural amizade, respeito e consideração entre parentes, que eram norma à época, era motivo de orgulho ter uma conterrânea e parente a morar na Rua d’Lisboa. Por isso, uma visita a Mari Candinha era incontornável.

A casa fervilhava de gente. Nho Lela e Mari Candinha não tinham filhos, mas também não precisavam. Viviam com eles, para além da menina Bia, irmã de Nho Lela, uma senhora próxima da terceira idade, se não já nessa faixa etária, as duas sobrinhas, São e Ivone, cuja mãe, Fufina, irmã de Mari Candinha, estava emigrada em Portugal. Também vivia com eles Manel de Deána, filho de Deána, da Ribeira Bote. Não deu para saber se eles é que o tinham criado. Manel embarcou cedo, quase rapazinho, e nunca mais soube dele. Esfumou-se na minha memória, e dele só me ficaram a lembrança e o nome. Mais tarde o Zé tomou o lugar dele. Zé é filho de Tunuque de Nhanha d’Rosar, e também sobrinho de Mari Candinha, e afilhado do casal. A São e a Ivone foram para o estrangeiro estudar. A Ivone voltou e vive na Praia. A São, ficou por lá.

É em casa de Mari Candinha e Nho Lelona que me fizeram a minha primeira fotografia, que me lembre. Foi no casamento da minha tia Chiquinha. A Eloisa, minha prima, filha da minha tia Chiquinha, ainda não tinha nascido e é por isso que ela não tem memórias desses tempos. Tirara outras fotografias, feitas pelo Carrim (Sr Carlos Delgado, da Enapor), quando ele ainda era rapaz solteiro e morava num quarto nas traseiras da casa de Nha Graciete, na Ribeira Bote. Ele tinha a mania das fotografias. Fotografava os meninos, mas nunca me deu, nem me mostrou, nenhuma foto minha. Era como foto de turista.

Entre as muitas memórias que tenho de Rua d’Lisboa, lembro-me da Sra. Prudência, que trabalhava na Farmácia do Leão. Pru, para os amigos. Na minha visão de criança, a Dona Prudência era a rainha de Rua d’Lisboa. Senhora jovem, bonita, simpática, expedita, e ainda, para mais, futurista. Eu achava estranho que, quando todas as mulheres queriam era ter cabelo, solto costa abaixo, ou às tranças, natural ou à força de pente de ferro quente, ela que tinha bom cabelo, cortava-o rente na cabeça, como um rapazinho. Eu achava-a bonita, mas "fanóca". Eu não haveria de permitir que a minha mulher cortasse assim a linda cabeleira que ela havia de ter.

A partir de 1968, de certa forma passei a ser também residente de Rua d’Lisboa. Minha mãe arranjou "pedra" (banca) no Mercado Municipal e eu era seu ajudante. Menino tido como "espirtin", caí na armadilha da lisonja dos adultos. Ia todos os dias de manhã cedo com ela. O mercado, também chamado popularmente de Plurin, era a base a partir da qual eu fazia todo o tipo de mandado. Vendia bananas à porta ou nas ruas, quando dava móia, para não estragar; ia entregar produtos recomendados a casa das freguesas importantes, e “tirar" (comprar) milho aos armazéns da SAGA (na área onde estão hoje os prédios do MindelHotel, Câmara de Comércio, e INPS); cada vez mais crescido, ficava a tomar conta da "pedra", quando a minha mãe tinha de ir ao cais ou a outro sítio qualquer. Era do Plurin que eu ia à escola todos os dias. Nas férias, era Plurin dia sim dia sim, e até já ia sozinho.

De modo que, Rua d’Lisboa praticamente não tinha segredos para mim. Conhecia todos os buracos de Morada. Por isso, quando vinha parente desembarcado, desactualizados das Repartições e de outros sítios aonde queriam ir, eu fazia de cicerone. Foi assim que ganhei do Tio Dionísio, ao passarmos pela Casa Benfica, uma camisinha novinha e bonitinha. Naquele tempo, mais certo de se ter uma roupinha nova era pelo Fim d' Ano.

Rua d’Lisboa, e todos os seus prédios, com todas as suas histórias e estórias, davam para muitos livros, tantos quantos cada um de nós quisesse escrever. Por isso, não dá para contar muitas estórias de uma assentada. Ficava muito cansativo, ainda mais se for para ser lido no ecran do computador.

(Excerto do post “RUA D’LISBOA, HISTÓRIA & ESTÓRIAS”, 18/11/2016.)

Ref. bibliográfica: Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo.

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Autoria:CÉSAR ISABEL DA CRUZ,5 jun 2020 7:39

Editado porSara Almeida  em  17 mar 2021 23:20

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