O gesto é um privilégio e distinção que registo com satisfação, naturalmente, e que agradeço, penhoradamente, àquele ilustre dignatário.
Limitado, contudo, na ciência e na arte, vou ficar por generalidades, esperando não desapontar, por ventura, nem quem me convidou nem os frequentadores do citado site.
Deliberadamente, não falarei da situação actual de pandemia, que apanhou tudo e todos de surpresa e continua, em boa medida, uma incógnita. De facto, embora seja evidente que os seus efeitos vão afectar a vida, profundamente, nos tempos mais próximos, não se pode, ainda, aferir do alcance e desarranjos, por ela provocados.
Cabo Verde tem um percurso, como Estado Independente, de quarenta e cinco anos, apenas. É todavia, uma Nação, com uma história e uma identidade, há, aproximadamente, quinhentos anos. Os entendidos na matéria afirmam que, por volta de 1820, ou seja, há dois séculos, Cabo Verde era já uma Nação, pronta a receber o Estado (Cfr. Iva Cabral, in Radiografia Crioula, UAL/Sílabas e Desafios – Lisboa 2016, coord. de Bruno Carriço Reis) e sabemos todos, por outro lado, que, por razões de isolamento, do clima, da insularidade e de sobrevivência, a Nação começou a caldear-se desde finais do século XV. Um percurso relativamente longo, tendo em conta, muito precisamente, o facto de as ilhas se encontrarem desabitadas, ao tempo do seu achamento.
É, como se sabe, uma odisseia que começa pelo comércio com a Costa Africana, e integra o hediondo tráfico de escravos, como actividade mais lucrativa, passa pela introdução de espécies animais e de flora no solo das ilhas, pela organização e acção na defesa contra concorrentes estrangeiros ao monopólio comercial e consubstancia-se, especificamente, na miscigenação, quanto a mim, o factor mais importante de todo esse processo.
Falar de miscigenação, com o clima de ódio, intransigência e radicalismo que existe, é, nos tempos que correm, uma atitude de risco. Confesso, no entanto, que não fossem as razões do tempo que me é consentido (cinco a dez minutos, no máximo), é um tema sobre o qual me debruçaria de bom grado, pois é a parte mais importante do processo ou da matéria em análise, por isso que relativa aos seres humanos deste Arquipélago. E, como ensinou Protágoras, sabiamente, “o Homem é a medida de todas as coisas”.
A verdade é que, cedo, o pardo, ou mulato ou crioulo, como se queira chamá-lo, ou seja, o Cabo-verdiano, nascido nestas ilhas, fruto, fundamentalmente, da relação física, social e cultural, entre Europeus e Africanos passou a ter um papel importante, na defesa do território, na produção agrícola e artesanal, no comércio e conquistou assento, por mérito próprio, no cabido da Diocese e nas Câmaras Municipais.
Este longo e conturbado processo de afirmação identitária conheceria, no entanto, a sua Hora Maior, ou a sua consagração política, no dia 5 de Julho de 1975, com a Declaração da Independência Nacional e a entrada oficial de Cabo Verde no concerto das Nações soberanas.
Desde então, temos sido, em toda a latitude, os donos e senhores do nosso destino, e os responsáveis pelo processo de desenvolvimento do nosso País.
Parece-me consensual afirmar que os ganhos com a Independência foram notórios e enormes, em quase todos os sectores da vida nacional.
Politicamente, o processo não foi nem tão patente nem tão consensual. Mas como o caminho faz-se caminhando, o Cabo-verdiano soube, na altura mais favorável, ultrapassar as distorções do processo e instalar um Estado de Direito Democrático, regido por uma Constituição moderna e equilibrada, que consagra a dignidade humana como um valor absoluto e garante o respeito e exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Não resisto a destacar que, a par dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a maior conquista do Povo das Ilhas, com a entrada em vigor da Constituição de 1992, terá sido, provavelmente, a reintrodução do Poder Local, na estrutura política do ordenamento do Estado. Um Poder Local que, historicamente, foi anterior ao Estado, como nós o conhecemos hoje, e sem o qual, o Cabo-verdiano de antanho teria, certamente, sucumbido, perante a inércia e o descaso dos Poderes Centrais, do tempo. Uma lição a aprender, pois, com o passado, para enfrentar, com êxito, o futuro.
Mas, dizia, a Independência foi um processo conseguido e as fundações do Estado de Direito Democrático estão, hoje, consolidadas. É esta a realidade com que nos confrontamos.
Podia-se caminhar mais depressa e com melhor proveito para todos? Acredito que sim!
A verdade, porém, é que não se pode mudar o passado. Todavia, conhecê-lo e analisá-lo com serenidade e lucidez, permite-nos tirar ilações uteis e projectar o futuro. Assumir medidas, cuja implementação demandam empenho, flexibilidade e inteligência. O que pressupõe diálogo, seriedade e compromisso de todos os sujeitos envolvidos no processo, se quisermos, de facto atingir, a prazo, o desiderato do desenvolvimento humano sustentado.
Assumindo os ganhos até hoje conseguidos, como sendo fruto do trabalho abnegado de gerações de cabo-verdianos, e admitindo que o desiderato do desenvolvimento é uma aspiração comum sincera, importa descortinar, então, que perspectivas para o futuro do nosso País.
Para se atingir uma sociedade próspera e justa, nestas Ilhas, há meia-dúzia ou pouco mais, de questões integradas que, me parece, deveriam constituir prioridades para qualquer Governo e, por isso mesmo, serem matéria de consenso nacional.
Em primeiro lugar, a mobilização e utilização adequada da água, bem de primeira necessidade, indispensável à vida, com saúde;
A seguir, uma gestão do território, que integre a preservação ambiental, priorize a utilização das energias renováveis e garanta o aproveitamento sustentado dos recursos da terra;
Uma Educação que prime pela qualidade, com valências consistentes na Matemática e domínio de Línguas, e integração das Novas Tecnologias, da Formação Profissional, Artes e do ensino da música, como opção, nos curricula do secundário. Entender a Cultura como o lastro que aglutina a Nação. A nossa maior riqueza. Um produto, pois, a ser preservado e valorizado;
O aproveitamento económico do Mar, como fonte de alimentos e riquezas naturais, via privilegiada de transporte entre ilhas e de ligação com o mundo;
A adopção de políticas financeiras, fiscais e de crédito, que facilitem a criação de empresas geradoras de emprego, produção e riqueza;
A capitalização e integração dos recursos humanos da Diáspora cabo-verdiana;
E por último, mas não menos importante, a descentralização dos recursos humanos, materiais e financeiros, com vista à concretização da Regionalização, único meio, quanto a mim, de resolver, em tempo desejado, o desígnio nacional de uma sociedade justa e próspera. É que, não se pode negar o óbvio: para que as chamadas “periferias” se tornem atractivas, as Comunidades que nelas queiram fixar ou permanecer terão que saber, à partida, que podem contar com a sua quota-parte dos recursos nacionais e de Poder, naturalmente, para se realizarem, na plenitude, como parte integrante da Nação.
Se estas premissas estiverem realizadas, estou convencido que os demais sectores do desenvolvimento humano conhecerão, concomitantemente, progressos assinaláveis.
*(Texto de suporte da apresentação feita no quadro da Celebração do 45º Aniversário da Independência de Cabo Verde, para divulgação no site da Embaixada, em Portugal).
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.