Li, não muito tempo atrás, numa notícia da Inforpress, no Sapo Notícias, o Procurador-Geral da República a lamentar o facto de, muitos bens apreendidos em processos de tráfico de drogas se deteriorarem e perderem valor, aguardando durante anos por uma decisão. O PGR apelava, por isso, “à concertação das instituições nacionais, para uma melhor gestão dos bens apreendidos”.
Nesses casos, nem são bens do Estado. São bens de cidadãos, nacionais e estrangeiros, apreendidos pela justiça, em processos de tráfico ilícito. Mas esses cidadãos sabem os riscos que correm. E, possivelmente, os bens apreendidos foram adquiridos com dinheiro proveniente do crime.
Esses bens, cuja apreensão constitui uma penalização aos infractores, para que o crime não compense, também poderiam traduzir-se em ressarcimento ao Estado, pelos custos inerentes aos processos: investigação, operação de captura e apreensão, destruição das drogas, julgamento, e, sobretudo, pelos custos de encarceramento dos condenados, e, ainda, de repatriamento, quando estrangeiros.
Se contabilizarmos, só a alimentação dos 11 condenados da “Operação Eser” - navio com 12 tripulantes russos, apreendido no Porto da Praia, a 31 de Janeiro de 2019, com 9,5 toneladas de droga - a 400$00/dia/preso, em 12 anos para o capitão, e 10 anos para a restante tripulação, penas a que foram condenados, respectivamente, dará, a preços correntes, cerca de 16.400 contos. Só a alimentação, sem considerar os restantes custos de hotel. Aí, o produto da venda do navio até poderia compensar. Isso se, no fim, o navio ainda tiver valor que compense. Sabe-se que, um navio imobilizado, em um ano perde muito mais valor do que se estivesse a navegar. Mas, por ora, a única certeza que se tem é dos constrangimentos e prejuízos que o navio causou à Enapor, durante mais de três meses ocupando um berço de atracação na área internacional do Porto da Praia. E foi preciso o director do porto ir à comunicação social lamentar-se, para que se decidisse que o navio fosse mandado ser colocado a apodrecer para outro sítio.
Mas, até aqui, tudo bem; ou, menos mal. O Estado somos todos nós, nenhum de nós em particular, de modo que, ninguém se sente pessoalmente prejudicado, conquanto o dinheiro que se gasta, e se deixa perder, faça muita falta na área social, com tantas famílias por aí, sem tecto, ou com o tecto ameaçando desabar sobre as suas cabeças.
Agora, o pior é quando é o pobre cidadão comum que vê os seus parcos bens, adquiridos com os sacrifícios de uma vida, bloqueados, congelados, perdendo valor e rendimento, correndo o risco de perder tudo, aguardando uma decisão da justiça, que nunca mais vem. E, para cúmulo, quando esses bens não têm origem criminosa, não estiveram envolvidos em nenhum ilícito, nem são objecto de disputa, ou de qualquer outra pendenga. Simplesmente, por decorrência da lei, que estabeleceu que, os bens de determinada categoria de cidadãos, com condição especial, para sua protecção – e não para a sua desgraça – devem ficar sob tutela da justiça.
Mas a nossa justiça tutela, ‘protege’, num sufocante e esmagador abraço de cobra que, pelo contrário, arruína. Tal como em relação aos bens apreendidos no tráfico ilícito, ou, ainda pior, o tribunal, quando solicitado, não dá uma decisão em tempo minimamente razoável.
Como compreender que, para uma simples “autorização judicial”, neste caso uma mera formalidade, imposição da própria lei, se leva 1 ano, 8 meses, e 8 dias? Em meses, 20 meses, ou, em dias, 617 dias, contados dia por dia: de 15 de Novembro de 2018 a 24 de Julho de 2020! Se valorizarmos, por baixo, a perda de rendimento nesse período a 1.500$00 por dia, a espera terá custado 925.500$00. 925 contos, para gente pobre, numa terra pobre, é muito, muito dinheiro. Isso, sem contar com os danos causados a terceiros. Ano entra, ano sai, o Estado vai inventando programas de luta contra a pobreza, tentando tirar uns quantos da pobreza. Entretanto, por outro lado, por inércia, vai mandando outros tantos para a miséria. Assim, nunca mais chegaremos lá, nunca mais passaremos da cepa torta.
Ainda assim, os bens envolvidos no tráfico de drogas têm melhor sorte do que os de pacatos cidadãos. O processo do navio “Eser”, apreendido a 31 de Janeiro de 2019, foi julgado por um colectivo de juízes, e sentenciado, a 28 de Fevereiro de 2020, tendo-se declarado o navio perdido a favor do Estado. Em pouco mais de um ano, os donos ficaram a saber com o que já não podiam contar; que tinham perdido o seu navio a favor do Estado. Não lhes serve de consolo, certamente. Mas sabiam dos riscos. Cavacos d'ofício! No entanto, se a sentença não tivesse confirmado a apreensão, em um ano e um mês poderiam voltar a dispor do seu navio. Já o pequeno pesqueiro brasileiro, ‘Perpétuo Socorro de Abaete II’, interceptado em águas internacionais, portanto fora de Cabo Verde, com 5 correios de droga brasileiros, viu a sua sorte traçada com muito maior celeridade. Apreendido em Agosto de 2019, lida a sentença em Março de 2020, ficou perdido a favor do Estado. Se bem que, tendo-se praticamente afundado, com o valor que lhe restará, o seu melhor destino será, certamente, banco artificial de corais. Da apreensão ao julgamento, foram sete meses. Entretanto, uma simples “autorização judicial”, praticamente um mero assunto de secretaria, que não tem contraditório, que não precisa de advogado, e que não vai a julgamento, envolvendo, não traficantes, mas sim dois pobres cidadãos, meus filhos, um, jovem desempregado, precisando resolver a sua vida, e o outro, jovem interditado por anomalia psíquica, por ter nascido com paralisia cerebral, cujo único crime foi a lei os ter colocado na situação de dependerem de uma decisão do tribunal, para disporem de um bem que é deles, continuava congelada, privando-os do correspondente e necessário rendimento, desde 15 de Novembro de 2018, sem fim à vista. E o Estado não dá o dinheiro para as fraldas do deficiente. Pelo contrário, vai encaixando IVA na sua aquisição. E não importa as vezes sem conta que se sobe as escadas do tribunal, o homem da secretaria diz, não, juiz não dá audiências! Perguntado pela resposta a mais um requerimento, diz, indolente, juiz não responde a requerimentos. A resposta que dá, é despacho no processo. Enquanto não despachar, há que esperar! Pois é, esperar. Esperar, esperar, e desesperar. Para eles, o tempo não conta, porque eles têm todo o tempo do mundo. Por isso, não se pode dar um passo à frente. Para eles, um ano é nada. Como se vivêssemos uma eternidade …
Mas, realmente, para quem já tinha esperado sete anos, de Abril de 2008 a Maio de 2015, um ano e uns meses são quase nada. Sete anos, num processo de “inventário obrigatório”! Ou, melhor, seis anos e tal. Isso porque, depois de esperar por mais de seis anos, somos notificados a comparecer no tribunal, enquanto pai e cabeça-de-casal no processo, para tomar conhecimento de que ... o processo extinguiu-se! Mas … o processo extinguiu-se, como? Porque os menores já não são menores, já são todos maiores. Sem menores, não há inventário obrigatório. Podem ir resolver o assunto lá fora, através de uma habilitação de herdeiros. Mas, querendo, o assunto pode continuar cá; agora com um processo novo, um processo normal, de inventário facultativo! Bem … mas … maiores, maiores, o mais novo é maior há já três anos. Tivessem avisado em tempo, não teríamos perdido mais três anos. Mas, que remédio, depois de tantos anos à espera, talvez agora tenham dó, e não demorem tanto! Ainda assim, demoraram mais sete meses.
Num processo de inventário obrigatório, não se exige advogado, e não se paga preparos. É que, o processo é patrocinado pela Procuradoria, porque o Estado “assume” a “protecção das crianças”. Imagine-se, então, se o Estado não assumisse a protecção das crianças … Seis anos e tal à espera, e … o processo extinguiu-se! Quando uma criança se torna um adulto, pode beber o leite que quiser, que o leite agora será só alimento. O leite já não a ajuda no crescimento, nem na fortificação dos ossos, nem a ter bons dentes. E o Estado não deu mais um pacote de leite que o outro progenitor já não podia dar, porque teve o mau gosto de morrer, quando ainda tinha filhos pequenos para criar, numa terra destas. Mas deixou bens. Bens que não servem aos filhos pequenos, porque o Estado, que se “assume” como “protector de crianças”, deixa tudo bloqueado, a desvalorizar-se, correndo o risco de se perder, não olha ao tempo que vai de criança a adulto, e deixa o processo extinguir-se. E ainda leva mais tês anos e tal para avisar que deixou que o processo se extinguisse.
Quatro décadas e meia depois da nossa independência, é nisto que estamos. E, periodicamente, por ocasião do Treze de Janeiro e do Cinco de Julho, saímos por aí em discussões estéreis, tipo, qual é primeiro, o ovo ou a galinha, argumentando, uns, que foi o Cinco de Julho, outros, que foi o Treze de Janeiro, que nos trouxe a liberdade. Cinco de Julho ou Treze de Janeiro, ou ambos, o certo é que já temos liberdade. Já somos livres. Somos livres, para viver, e morrer, na miséria, aguardando uma decisão da nossa justiça, que nunca mais chega. E quando chega, chega tarde e a más horas.
Finalmente, em plena crise mundial, provocada pela pandemia da Covid-19, já temos a bendita “sentença de autorização judicial” - ou não seria melhor dizer, a maldita sentença de autorização judicial?! - papel esse que, até agora, nos vai custando 900 e tal contos. Mas não sabemos qual será o seu custo final, porque não se sabe exactamente o que vem aí, e quais serão os outros danos a serem causados por essa demora toda. É que, já não há mais o que fazer com o papel; pelo menos, por enquanto. O fim a que se destinava … “extinguiu-se”. Diz-se que "O tempo da justiça não é o tempo dos cidadãos". Mas, ‘cá fora’, as coisas mudam tão depressa, que o tempo é tudo. Passou-se tanto, mas tanto tempo que, quem queria comprar já não está interessado em comprar, ou já não está em condições de comprar, apesar de ter tido crédito bancário aprovado para o efeito, aguardando esse tempo todo. Os tempos agora são outros, são tempos de incerteza. Todo o mundo quer vender, poucos querem comprar. O que tinha muito valor ontem, hoje, pouco ou muito pouco pode valer. Por isso, as bolsas despencaram por esse mundo fora. E não sabemos se não vêm aí novas “vinhas da ira”. O que não é incerteza, é o grande problema que agora vamos ter, com a devolução do sinal ao ex-promitente –comprador.
Ainda ontem fazíamos as contas à nossa taxa de crescimento económico, com o orçamento do Estado para 2020 a prever uma taxa de crescimento entre 4,8 a 5,8%, com o Ministro das Finanças confiante que os almejados 7% de crescimento económico seriam atingidos ainda nesta legislatura. O PM, optimista, já previa pleno emprego para 2026. De há muito que prevíamos um milhão de turistas para 2021 e 3,5 milhões para 2030. Natacha Magalhães publicava, no Sapo Notícias, um artigo de opinião a propósito da fartura das últimas festas de cinzas em Santiago, ilustrado com uma colorida foto de uma banca de mercado, cheia de comida - tubérculos, couves e outros hortícolas, peixe seco e xêrén, … - com o título "Para nunca mais sermos Famintos", aproveitando para fazer a contraposição com o cenário de fome e miséria descrito na obra “Famintos”, de Luís Romano, cuja leitura dizia ter iniciado por esses dias.
Poucos dias depois, chegavam-nos imagens deprimentes da Europa - a Europa que nos ajuda a esconjurar a fome - com as pessoas, apavoradas com a Covid-19, a lotar os supermercados, esvaziando prateleiras, açambarcando alimentos para stockar em casa, com medo da fome, lutando corpo-a-corpo por um mísero rolo de papel higiénico, não obstante as autoridades garantirem que havia comida para todos. Mas, desconfiadas, preferiam prevenir-se, porque ninguém sabe quanto tempo isto vai durar. Todo o mundo parado, sem poder sair à rua, estado de emergência decretado em alguns países, inclusive no nosso, muitos a trabalhar a partir de casa, quase ninguém a viajar, nem internamente. O turismo congelou, ou, melhor, derreteu-se. O nosso ministro das Finanças, que dissera inicialmente que ia refazer o Orçamento do Estado, que ia pedir ajuda ao Banco Mundial e ao FMI, corrigia-se: já não se trata de corrigir o orçamento, mas sim de fazer um novo orçamento, a partir de Junho. O orçamento anterior “pifou”. Em pouco tempo, em menos de três meses, tudo ruiu, ‘pifou’, no dizer do ministro. De uma perspectiva optimista, de um crescimento de 4,8 a 5,8% para 2020, hoje o MF já estima a duplicação da taxa de desemprego para 20%, e um crescimento negativo entre 5% e 4%. De onde estou, testemunhei, pelo menos uma vez, o vaivém de pessoas mais vulneráveis, recebendo cestas básicas, distribuídas pela Câmara Municipal, para que não passassem fome, em tempos de confinamento obrigatório, imposto pela declaração de estado de emergência. “Para nunca mais sermos famintos.” Até parece ironia!
A preocupação primeira, hoje, é manter as pessoas vivas; as pessoas se manterem vivas. O que vai ser o amanhã, ninguém sabe. O tempo dirá. O tempo determina tudo. O tempo, sempre! Mas o Tempo da nossa justiça é Transcendental. Não tem nada a ver com a realidade do tempo “cá fora”; está para além do tempo da vida do comum dos mortais.
O eminente jurista Wladimir Brito diz que, "Uma decisão em tempo irrazoável é uma manifesta injustiça". Mas o povo, que aprendeu com o vento a bailar na desgraça, e, com as cabras, a comer pedras, para não perecer, no dizer do poeta, resignado, que nem boi em matadouro, continua a racionalizar:
- A justiça tarda, mas não falha!