Razão de quê o estado de coisa? A conjunção de múltiplas causas. Mas terá sempre relevo – senão relevo maior – o desgaste do capitalismo que, se já era gerador de fenómenos sociais nefastos para vastíssimas franjas populacionais ao nível planetário, com a globalização o capital torna-se ainda muito mais difícil de governar. Com consequências profundas e perturbadoras: mais prossegue vagueando pelo espaço planetário à procura de mão-de-obra barata, insumos baratos, debilidade regulatória, ambiente subornável, etc., etc., mais problemas o capital deixa nos locais donde parte – montes de gente lançados ao desemprego com a deslocalização de empresas – e mais problemas leva para os destinos de penetração, acelerando desigualdades em proveito de poucos, tensão social, conflitos étnicos, dum modo geral, terrorismo e movimentação sem precedente de correntes migratórias que cobre de perigos e incertezas o século XXI dos nossos dias, a cujos impactos sequer escapam países grandes e pequenos, estes, evidentemente, sofrendo na pele traumas de maior dureza. Razão para questionar: que espaço de manobra, nestes tempos tão difíceis para a generalidade dos povos, restará para a sobrevivência e progresso de países de emancipação recente, pequenos, insulares e pobres?
No caso de Cabo Verde, sorte é que ao balançar para a sua emancipação política, já se antevia, alcançada a emancipação, que dificilmente cairiam estas ilhas em situação pior da que sempre estiveram sob a tutela colonial, o que o momento já vem confirmar, pois, na realidade, se as recorrentes secas daquele tempo já eram bastantes para ceifar vidas aos milhares, melhor teste não haveria que, sob o efeito conjugado de uma das piores secas de que há memória nestas ilhas e uma pandemia das mais devastadoras de que também há memória seguindo a apagar montes de vidas e destruindo economias e dinâmicas de progresso por todo o mundo, esta grande questão se põe: como estará Cabo Verde a resistir a essa terrível conjunção? Talvez não se surpreenderia com uma resposta que viesse assim: a serenidade de um normal duro, duríssimo, porém, já bem longe do vaivém das antigas cirandas que produziam limites brutais ao campo dos sobrevivos. É um facto. Resistente o povo destas ilhas vindo de tão severos processos de seleção, característica forte, fortíssima, trunfo que bem jogado na barganha da construção do futuro poderá hoje elevar bem alto as esperanças de uma vida melhor.
Em certa medida não poderia haver provação maior a que neste momento envolve de forma tão impiedosa o coletivo destas ilhas. Porém, ela traz a oportunidade para se sentir melhor a importância que foi a aposta no projecto da emancipação política, oportunidade para se sentir premiado com esta nova fase da história que veio permitir durante estes últimos 45 anos de soberania lançar as bases do edifício do futuro, e resistir com firmeza a violência do impacto produzido pela seca e pela pandemia. Haverá erros no decurso do processo? E na confrontação de sensibilidades divergentes revela-se desgaste de energia que melhor poderia ser aproveitada na potenciação do progresso? Indubitavelmente que sim, sem que isso leve ao desânimo quando na equação que perspectiva o futuro vai-se ver que, próprio dessa fase, nem sempre a competência esteve a preceder a construção, obrigando a ir ao ritmo e às contingências daquilo que poderia ser uma formação com mãos em acção, o que envolve um potencial de risco já propenso ao cometimento de erro, não obstante o capital de saber e experiência acumulado em todos esses anos de soberania. E é aqui que as coisas já parecem complicar-se uma vez que, não obstante o estádio atual do capital humano, permite-se fuga em frente sem uma oportunidade para parar, olhar para trás e ver o estado do edifício em construção, eventualmente, erros, desvios de percurso, anseios frustrados, e assumi-los para a correção: com humildade, honestidade, determinação e vigor, e afinar os mecanismos para conduzir ao outro estádio: a emancipação económica, fundamental para a prosperidade e dignidade do povo destas ilhas.
Durante os 45 anos fez-se muito com o foco na ajuda externa, mas se por um lado há uma vertente boa por tudo quanto de positivo foi no período realizado, há que assumir que também existe outra vertente sensível e já preocupante, por colocar o país na acomodação da generosidade dos povos que já poderá prejudicar as condições subjetivas tão essenciais para o dito salto da emancipação económica. Porém, a melhoria das condições subjetivas como o salto exige implica aperfeiçoar o perfil identitário do cabo-verdiano para se socorrer como trufo, importante quanto nesta matéria já se sente pouco o realizado. Importa ver a este propósito que países como o Ruanda, o Botsuana, a Indonésia não hesitaram lançar-se a fundo na construção das respetivas identidades e são hoje premiados com bons resultados económicos, que no mínimo, cá para nós, não deveria ser ignorado quando já se vê imperiosa a necessidade de robustecer o potencial de interesses partilhados e a capacidade de mobilização. Mais ainda, é essencial para as condições subjetivas que se promova projetos de grande potencial mobilizador da nação, onde cada um possa ver refletido um pouco de seu interesse, projetos para serem pensados, já não na perspetiva de um mundo estático com reprodução de modelos ultrapassados pelo tempo, mas para refletir o mundo atual em movimento acelerado que exige a sintonia da atividade doméstica com as grandes transformações globais que ditam uma nova ordem planetária.
Estará Cabo Verde a acautelar o controlo do seu destino através de projetos com tal sintonia? De certa forma vai dando passos positivos nesse sentido, muito embora modestos e falhos da abrangência e do enquadramento que seriam necessários. Por exemplo, para contrariar os efeitos da seca durante o período, mesmo mitigado, nunca cessaram as atividades no domínio da pequena hidráulica, nem tampouco, mais recentemente, determinação e coragem para se lançar na construção de barragens já tendo em conta a necessidade de enfiar para os lençóis freáticos em debilitação alguma água da cada vez mais rara e escassa chuva quando cai, e assegurar reserva de modo a contribuir para o verde do campo e o equilíbrio ecológico tão essenciais para a sustentabilidade económica. Reconheça-se também esforços para limitar a fatura energética vinda do exterior, através da exploração de energia renovável, que independentemente do modo como ainda se aplica é potencial que não deixará a seu tempo de mudar radicalmente a vida nestas ilhas em conjugação com bom uso das novas tecnologias.
Porém, o pecado surge quando não é feito o devido enquadramento estratégico, única forma de definir um rumo e maximizar para as ilhas as vantagens oferecidas pelo atual mundo. Por exemplo, hoje, cada vez mais vai-se constatando iniciativas para requalificar orlas marítimas, o que já é um bom passo, todavia, sempre ficando por esclarecer como a requalificação poderá ser feita para ampliar a margem de manobra na resolução de temáticas como a habitação do século XXI: fazê-la aparecer lá onde é propícia para desencorajar excessiva concentração nos meios urbanos ou no interior das ilhas para opor à debilitação dos campos irrigáveis; aparecer com tipologia aberta ao aproveitamento de energias renováveis e adequada a nova dinâmica paisagística com ponto de partida nas orlas marítimas; sobretudo, habitação concebida para estimular uma nova política de distribuição demográfica e inverter as actuais tendências de migração descontrolada. Na verdade, se não se acautelar, projetos lançados aos salpicos sem preocupação de encaixe na grande estrutura em montagem poderão constituir bloqueio ao salto rumo à tão ambicionada emancipação económica que colocará o povo destas ilhas no lugar ao sol da prosperidade que legitimamente vem perseguindo.
Um dos grandes problemas que a pandemia veio revelar é que ao país falta resiliência na sua capacidade endógena de produção: como se vê no caso do turismo, bloqueiam-se os corredores de movimentação dos fluxos externos e a quebra na economia é tão brutal que faz recuar de anos muito do progresso que a muito custo já havia alcançado. Facto que faz pensar na necessidade de injetar reforço na capacidade endógena, ou melhor ainda, promover projeto de grande porte capaz de – em amplitude e profundidade – revitalizar com sustentação todo o universo das actividades económicas, já obrigando a pôr a questão: em que medida seria oportuno e realizável projeto de grande porte tão mobilizador da nação como foi o da emancipação política, projeto para ter função colunar no funcionamento do sistema económico? De certo modo já teve essa função o Porto Grande de S. Vicente do século IXX, que infelizmente viria a perder-se devido a inação com reflexo na contenção da degradação das condições competitivas. Questão agora é como ressurgiria o Porto Grande do século XIX já em estado soberano e num mundo tendente a nova ordem onde haverá profunda reformulação do quadro das grandes rotas marítimas potenciadoras de oportunidades. Bons sinais já vêm das perspetivas de um Oceano Ártico navegável – decorrente de mudança climática – e de novo canal nas Caraíbas, já bastante para mostrar que é legítimo permitir-se à ambição de um novo Porto Grande ajustado às circunstâncias do mundo actual.
Então é legítimo apostar que novo `galo` poderá cantar, já não nos estreitos limites da velha baía, mas em limites bem mais amplos permitidos pela geografia posicional das ilhas de S. Vicente e Santo Antão. Os primeiros passos? Nasça e cresça a corrente visando o alvo sob o brilho das nossas estrelas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 979 de 2 de Setembro de 2020.