Em relação ao século XIX, objeto da nossa análise, desde os anos cinquenta desse século, que as autoridades sanitárias vinham chamando a atenção para a necessidade de medidas e instruções, por parte das autoridades competentes, no sentido de impedir a entrada da febre-amarela no arquipélago, a partir do Rio de Janeiro, onde a epidemia vinha grassando.2 Apesar destas chamadas de atenção, não foi possível evitar a sua entrada no arquipélago, nomeadamente na ilha da Boavista.
“Seu avô, nhô Isaac Benoliel, terá vindo de Marrocos lá pelos meados de 1800 e segundo Lela e muitas outras pessoas terá chegado pobre e andrajoso e fugido de não se sabe que guerras, iniciando a sua brilhante carreira comercial vendendo de porta em porta cartuchinhos de açúcar feitos em papel de saquinha. Durante a febre amarela de 1845 ele aproveitou para comprar ao desbarato os bens daqueles que fugiam da doença e quando morreu já era apenas conhecido como “o judeu dos gatos,” porque, ao que se dizia, tinha a mania de andar sempre com um deles pendurado ao ombro(…)Lela é que nunca se conformou com a decrepitude dos anos seguintes e costumava acusar a febre amarela de não apenas ter matado a Maria de Patingole, como também a própria ilha (…).”3
Ainda que o estético seja a característica essencial do texto literário, este poderá fornecer pistas interessantes sobre realidades históricas, porquanto pela ficção podemos dialogar criticamente com a história nacional. A afirmação acima referida, feita por Germano Almeida, em A Ilha Fantástica, nos convida a revisitar a documentação oficial, na qual de facto, encontramos fixada a epidemia de febre-amarela, que assolou a ilha da Boavista entre 1845 e 1847.
Ao que tudo indica, a doença foi trazida pelo vapor inglês “Eclair” que “chegou à ilha em 21 de Agosto de 1845.”4
“ Quando o patrão-mor da ilha da Boavista foi a bordo do “Eclair” fazer a visita, disse-lhe o Comandante que vinha de Galinhas, e que trazia a bordo três doentes de febre da Costa, o que lhe foi certificado pelos cirurgiões de bordo.”5
Recorda-se que nessa altura, encontrava-se a residir na Boavista, o Governador-geral de Cabo Verde, D. José Miguel de Noronha (1845-1847), “com sua família, o Estado-Maior, todos os funcionários e suas famílias, fugidos da vila da Praia por ser a época das febres.”6
Face ao crescente aumento de casos, em novembro do mesmo ano, “o Governador-geral, sua família, Estado-Maior e todos os empregados adidos ao Quartel-General,7 “fugiram para a ilha Brava, juntamente com o cirurgião-mor do Batalhão de Artilharia, José António Nunes, que o governador mandou buscar na Praia, e que ficaria a ser conhecido por “Febrona,” pelos habitantes da Boavista.”8
Também fugiram da ilha outras entidades “como o cônsul inglês, John Rendall, que passou a residir em Santo Antão, depois em S. Vicente, assim como o secretário da Comissão Mista anglo-portuguesa; os árbitros da referida comissão, Mrs. Charles Pettingall e H. Macauley, que foram para São Nicolau; os comandantes Militar e do Forte Duque de Bragança fugiram para a ilha do Sal (…).”9
Fonte: IANCV-MDE. Ficheiro Iconografia de Cabo Verde.
A população da Boavista ficou entregue à sua sorte, sendo a mortalidade bastante elevada. Diz-nos Santa Rita Vieira que “em Agosto de 1845, existiam na ilha da Boavista 869 fogos, para uma população de 4.146 habitantes: 4026 naturais de Cabo Verde e 120 naturais de outros países. Foram atacados pela febre-amarela 3.311 indivíduos; curados 2. 993 indivíduos; mortos 315; não atacados 732 indivíduos e emigrados 95 indivíduos.10
O povo apenas pôde contar com a solidariedade vinda das outras ilhas e de alguns países estrangeiros, designadamente da Inglaterra de onde, “para além do seu Governo ter enviado o Dr. Mac William,11 vieram 1.000 libras esterlinas para serem distribuídas ao povo da Boavista.”12
Em 1846, a fim de combater a epidemia, chegaram à ilha, os cirurgiões Joaquim Ribeiro de Moraes, cirurgião-chefe, e José Fernandes da Silva Leão,cirurgião de 2ª da Armada, que acabaria também ele por ficar doente, conforme nota dirigida ao Secretário Geral Governo da Província, datada de 4 de abril do mesmo ano, na qual, o cirurgião-chefe informa que o seu colega “(…) se acha presentemente convalescente da febre amarela da qual começou a sentir os symptomas no dia 23 de Março (…).”13
Dias depois, numa outra nota, informa que, “desde o dia 20 de abril não tem atacado pessoas algum nas seguintes povoações: Porto de Sal-Rei, Rabil, Povoação Velha, Fundo das Figueiras, Cabeça das Tharafes e em João Gallego (…),”14 parecendo, assim, dar sinais de melhorias.
Esta doença que prevaleceu particularmente entre a camada populacional onde grassava a miséria, acabaria por ser extinta em 1847, o que não significa que Boavista ficou com os seus problemas sanitários resolvidos, porquanto a febre-amarela foi seguida “de uma epidemia de varíola que deixaram a ilha quase despovoada.”15
_____________________________________________________________
Notas
Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999). História da Medicina em Cabo Verde Praia: Ministério da Saúde de Cabo Verde, p. 26.
Boletim Oficial do Governo-geral de Cabo Verde, nº 2; Portaria circular nº 58 de 15 de maio de 1850.
Almeida, Germano (1998). A Ilha Fantástica- Romance-; 4ª edição; Mindelo: Ilhéu Editora, p. 13.
Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999), Op. Cit.p. 152.
Idem, Ibidem.
Idem, p. 151.
Idem, Ibidem.
Lima, António Germano (2017). Boavista. História, Economia, Sociedade e Cultura; Praia: Pedro Cardoso Livraria, p. 397.
Idem, p. 398.
Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999). Op. cit. p 181.
Este médico chegou a requerer para ser condecorado com o hábito da Torre e Espada, o que acabou por acontecer, pelo seu papel no combate à epidemia de cólera-mórbus de 1856 (Barcellos, Christiano José de Senna (1898).Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné; Parte VI; 1ª edição; Lisboa: Academia das Ciências, p.72).
Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999). Op. cit. p. 175.
IANCV-SGG Cx. 633; Peça 3. Correspondência recebida do Cirurgião da 1ª, chefe da Armada, Joaquim Ribeiro de Moraes e do cirurgião de 2ª da Armada, José Fernandes da Silva Leão, da ilha da Boavista. Abril – dezembro de1846. Originais manuscritos.
Idem, Ibidem.
Cordeiro, Ana (2020), (Org). Cabo Verde, 1855-1856, Os Anos de Cólera. Relatório da Importação do Cholera-Morbus Asiático pela Barca Sarda “ Corça” para a Ilha do Fogo, de José Fernandes da Silva Leão; Mindelo: Ilhéu Editora. p. 7.