Aí um tempo atrás, dei-me comigo a admirar, numa foto publicada no facebook, o marco de correio que fica lá em Cruz João Évora, numa esquina da praça, frente à Loja de Nho Jom Bento, como se eu não estivesse na zona a toda a hora, e não o tivesse já visto, centenas ou mesmo milhares de vezes. O marco, hoje, já não tem serventia, a não ser de recordação. Já quase ninguém escreve cartas. E mesmo que um ou outro escreva uma carta, já não a associa ao marco de correio.
A carta foi, ao longo de séculos e séculos, o meio de comunicação por excelência, entre pessoas distantes umas das outras. Cá, entre nós, entre pessoas no mesmo lugar, na mesma ilha, em ilhas diferentes, e no estrangeiro.
Namoro a sério, tinha que ser firmado por carta. Quem não soubesse escrever, pedia a quem soubesse. Mas não era uma carta escrita de qualquer maneira. Havia carta para cada situação e estado de alma, para a conquista, para o namoro, para zangas e reconciliações, padronizadas na mais que famosa “As 100 mais lindas cartas de amor”, que se obtinha na Livraria Gomes, de Toi Pumbinha. Rompimento para valer, também tinha que ficar atestado em carta. As cartas eram guardadas religiosamente, e o rompimento só se considerava definitivo quando houvesse troca de cartas. Cada um devolvia ao outro as suas cartas e fotografias.
Juventude de agora acha que os da época dos pais e avós devem ter sido uns coitados duns “tanás”, que não tinham swag para falar até quentar orelha, não tinham facebook, não tinham messenger, e a grande maioria nem ao menos telefone fixo tinha. Mas também, eles não sabem o que é a doce “dor dum sodade”, nem conhecem a magia de uma carta de cretcheu. A carta não poderia faltar na nossa música, desde um clássico Eugénio Tavares, com “carta di nha cretcheu”, a uma moderníssima Lura, com “Trazê-me so um cartinha”.
A carta ganhou maior importância nas nossas vidas, com o início da emigração para a Europa, nos primórdios da década de sessenta. Era através da carta que os filhos e maridos “embarcadistas” davam notícias à família. A carta é que trazia, a maior parte das vezes, as libras e as guildas para o sustento da família, disfarçadas de diversas formas. Umas vezes no meio de papel químico, para tornar o envelope menos transparente contra a luz, para não denunciar as notas; outras, acompanhadas de um postal, com a inscrição no sobrescrito “contém fotos”, para as notas não serem denunciadas pelo volume e peso da carta. Mas, com o tempo, os diversos intervenientes no percurso da carta foram descobrindo os truques, razão por que muitas nunca chegavam aos destinatários. Uma forma de mitigar o risco era enviar a carta registada. Mas era só mitigar, porque em caso de subtracção do conteúdo podia-se sempre argumentar que tinha sido na origem.
As cartas vindas do estrangeiro eram distribuídas por carteiros, funcionários dos CTT, zona a zona, normalmente à porta da residência do cabo-chefe. Eu ainda criancinha, na Ribeira Bote, o cabo-chefe era o Senhor Matias de Nha Zepa, morador na Rua 1. Fazia-me confusão como é que o avião, lá de cima, conseguia largar as cartas para caírem precisamente na casa do Senhor Matias, sem se “esfringanharem” no ar. As pessoas que tinham familiares embarcados iam a todas as chamadas, pois passou-se a não se entregar carta de ninguém a pessoa diversa, parente ou vizinho, para evitar sumiços e subtracção de valores (oficialmente não era aceite a prática de enviar valores dentro de cartas). Era uma frustração e preocupação enormes quando durante várias idas à chamada, não se recebia carta nenhuma.
Nesse tempo, a maioria das pessoas adultas, especialmente as mulheres, mães e esposas dos embarcadistas, eram analfabetas. Quem não tivesse em casa uma criança na escola, ficava de olho nas crianças dos vizinhos. E era uma ansiedade … já sabes escrever uma carta? Eu, na minha basofaria, e ânsia de querer mostrar serviço, na 2ª classe já era escrevedor de cartas. Para além das cartas lá de casa, era o “escriba” oficial de Nha Chica d’Alberto, nossa vizinha ao lado. E era uma relação de fidelidade. Afinal, o “escriba” era o depositário de segredos da família, de que se tinha conhecimento através das cartas, do que se escrevia e do que se lia, pelo que não era coisa para, ora um ora outro. A chatice é que, quando o que se queria era ir brincar, tinha-se que ficar aí sentado, tempo que parecia infindável, a escrever e a dizer, já está, já está! As cartas eram ditadas enquanto se ia fazendo as lides domésticas. Você tomava o seu tempo a escrever a cabeça-de-carta, depois despejavam a quantidade de assuntos que a sua cabecinha conseguisse aguentar, e ia escrevendo, até dizer já está!, para uma nova leva de assuntos. A competência do escriba era avaliada no fim, ao se ler a carta, e constatar-se que estava tudo certo e compreensível, e que nada havia sido esquecido. Mas todos esses incómodos tinham o seu lado bom porque, como diziam os mais velhos, “menino que ta fazê mandóde, ta cagá fiêra”.
A minha relação mais próxima com um marco de correio, aconteceu na escola, quando eu estudava a 4º classe. O texto de leitura era “O Marco de Correio”. Naturalmente, constava do sumário do dia a redacção, Uma Carta. Não era uma redacção como do costume, mas sim a escrita de uma carta. Conforme orientações da professora, cada um escrevia uma carta, a quem bem entendesse, uma carta como se fosse uma carta de verdade. Mãos à obra!
“S. Vicente, tantos de quantos de mil novecentos e setenta e dois.
Meu querido irmão do meu estimado e leal coração, que será sempre: João Manuel Francisco.
É com imensas saudades que pego nesta pena, para te traçar estas duas amáveis regrinhas, que espero te irão encontrar de boa e perfeita saúde, ao lado de todos os que te rodeiam, e te são queridos. Nós por cá, ficamos todos de saúde, graças a Deus, somente lamentando as tuas saudades sem fim, que só terão fim de vista a vista, se um dia assim Deus quiser.
Em primeiro lugar, tenho a dizer-te que recebi com satisfação a tua amável cartinha, que tenho o prazer de te passar a responder. “
Carta que se prezasse, era assim. Primeiro a cabeça-de-carta, adaptada em função do destinatário, mais palavra, menos palavras, mas quase sempre o mesmo. A princípio, eu até escrevia a cabeça-de-carta. Mas, avesso a lugares comuns, cedo comecei a achar ridícula toda essa lenga-lenga, sempre igual. Enquanto “escriba”, pedia que me ditassem os assuntos em adiantado, uma vez que o cabeçalho eu já conhecia de cor e salteado. Na hora da leitura de conferência, eu lia de carreirinha o cabeçalho que, afinal, omitira. De modo que, as minhas cartas, contrariamente à norma, não tinham cabeçalho.
A minha carta-redacção foi endereçada à minha tia Isabel Peknin, residente em Rotterdam, Holanda. Nessa altura ainda não tinha muito por onde escolher. A imigração para a Europa estava relativamente no início e ainda tinha muito poucos parentes emigrados. Mas, tivesse dezenas, centenas, ou mesmo milhares, o escolhido teria sido ela, na mesma. Sinceramente, já não me lembro do conteúdo da carta, que era ficcionada, mas certamente que terei aproveitado para lhe agradecer pela linda pasta de costas que ela me mandara. Ninguém na minha escola, Escola 12-B da Ribeira Bote, mais conhecida por Escola Nova de Ribeira Bote, tinha uma pasta de escola melhor do que a minha. Nem o meu irmão mais velho, que beneficiava da prerrogativa de ter as coisas primeiro do que eu, teve uma pasta que se comparasse com a minha pasta, a pasta que a minha tia me mandara. Tinham ficado definitivamente para trás, aquela pastinha ridícula, feita de tecido caqui azul-marinho, que levava a tiracolo, e as bolsas de plástico transparentes, do tipo acaba-uma-arranjo-outra, por que cedo a trocara. A minha professora, Teresa de Nho Dezoito, ficou espantada com a minha carta-sem-cabeça, que teve que levar o meu caderno lá para o primeiro piso, para mostrar à sua colega, a professora Francisca, da turma feminina da 4ª classe.
Talvez a verdadeira razão de não escrever cabeças de carta fosse preguiça, porque não gosto de escrever. Mas também, se começo a escrever, não consigo parar. Talvez seja também por isso que não gosto de escrever.
Hoje em dia, já quase ninguém escreve cartas. Antigamente, quando alguém viajava, muito pouca gente tinha telefone em casa, e era aquela ansiedade, durante 20 dias, um mês, dois meses, … até se receber a cartinha com notícias sobre a viagem e sobre as novas condições de vida no lugar de destino. Hoje, acompanha-se tudo no facebook: fulano está no aeroporto Cesária Évora; fulano está a viajar de S. Pedro para Amsterdam; fulano chegou no aeroporto de Schripol ... Mas eu continuo com o enguiço de perguntar, sempre que alguém viaja: fulano já escreveu? E ainda me respondem, não, telefonou!
Crónica publicada originalmente no Facebook, em 04/11/2017