Busto de Gandhi: Um Presente Envenenado

PorEurídice Monteiro,11 out 2020 7:23

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Se foi e é importante esse movimento de desapropriação da memória por partidos políticos cabo-verdianos, por que razão os políticos da nossa terra aceitam de forma acrítica a aclamação de heróis que desumanizam, humilham e rebaixam a auto-estima do nosso povo?

Há debates difíceis, mas necessários. De igual modo, há decisões inevitáveis e outras desnecessárias. Pelo que, nos dias que correm, uma estátua de Mahatma Gandhi no nosso país é dispensável. É dispensável, até porque hoje vivemos num tempo em que a ciência e a tecnologia tornam disponíveis, à escala universal, conhecimentos e informações que permitam uma tomada de decisão e de posição mais consciente e consequente, de maneira que já não restam dúvidas de que Mahatma Gandhi, devido às ideias que defendia sobre a inferioridade dos africanos e às práticas misóginas pelas quais se pautava, não se coaduna com o ideal de sociedade democrática e humanista que se pretende construir em Cabo Verde.

Ao longo de uma história de sofrimento e resistência, a Nação Cabo-verdiana tem-se fortalecido tendo como motor a inabalável esperança de criar nestas ilhas as condições de uma existência verdadeiramente digna para todos os seus filhos, sem discriminação alguma em razão de raça, sexo, ascendência, língua, origem, religião, condições sociais e económicas ou convicções políticas ou ideológicas. Com efeito, se Mahatma Gandhi tem sido alvo de uma forte contestação mundial com particular incidência no continente africano, nas caraíbas e na diáspora negra, onde as estátuas que o enaltecem têm sido removidas sem lamento pelo movimento Gandhi Must Fall, não ocorreria que na presente conjuntura internacional alguém se lembraria de trazê-lo cá para as ilhas de Cabo Verde. As estátuas não são múmias. Outrossim, as estátuas falam, louvam, evocam, glorificam e propagam o que se quer representar.

Todos nós gostamos muito da Índia, temos lá e de lá vários amigos e colegas, desejamos boas relações entre os dois países e respeitamos a história e a cultura daquele povo tão sofrido como o nosso. A Índia tem todo o direito de, no âmbito da sua política externa, propagar as suas referências e exaltar os seus heróis, à escala global. O que não podemos aceitar de ânimo leve é que, ao abrigo das trocas comerciais e outras entre os dois países, nos tragam esse presente envenenado. Trata-se, sim, de um presente envenenado, atendendo à História da Nação Cabo-verdiana e ao futuro que pretendemos construir. Gandhi é um herói na Índia, mas não é uma referência para nós os filhos destas ilhas. Somos um povo com memória e queremos usufruir do direito à dignidade humana.

Os dois maiores partidos políticos do chamado arco da governação sabem bem o que significam os símbolos e monumentos. Recorda-se que, quando o PAIGC, transmutado mais tarde em PAICV, tomou o poder em 1975 em Cabo Verde, não se coibiu de desmontar as estátuas mais enigmáticas do período colonial, entre as quais a monumental estátua de Diogo Gomes, mandada erguer nos anos cinquenta por António de Oliveira Salazar, para que do alto da colina do extremo sul do Plateau vigiasse a memória das ilhas. De igual modo, também substituíram nomes de ruas, escolas e auditórios outrora emblemáticos. Décadas depois, com a chegada do MPD, os heróis do mar regressaram à cidade, ocupando as placas de ruas e praças, o então hino nacional rabiscado por Amílcar Cabral foi substituído por outro e a bandeira amarelada de outrora foi trocada pela azulada. Todo esse movimento de mudanças de símbolos nacionais e nomenclaturas teve um propósito, que foi o de descongestionar a memória e dissociá-la de partidos e grupos de interesse.

Se foi e é importante esse movimento de desapropriação da memória por partidos políticos cabo-verdianos, por que razão os políticos da nossa terra aceitam de forma acrítica a aclamação de heróis que desumanizam, humilham e rebaixam a auto-estima do nosso povo? Não se pretende minimizar a grandeza de Mahatma Gandhi, mas também não se pode ignorar que edificá-lo num território africano mais não é do que a aceitação sintomática da sua pseudoteoria acerca da inferioridade dos africanos. Ou será que nós não somos africanos?

Em última instância, elevar uma estátua de Mahatma Gandhi na cidade da Praia da ilha de Santiago de Cabo Verde, berço da escravatura transatlântica e do racismo euroafricano, é um acto de humilhação contra o povo cabo-verdiano que, ao longo dos séculos, soube com coragem e astúcia lutar contra as vicissitudes do destino, traçado nas malhas do racismo, do sexismo e do «sistema de casta» que tanto destruiu e continua a destruir vidas e sonhos. O nosso povo merece referências e celebrações que nos dignifiquem na nossa humanidade e nos abram caminhos de futuro.

A zona de Achada de Santo António tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento; a cidade da Praia tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento; a ilha de Santiago tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento; o arquipélago de Cabo Verde tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento; o continente africano tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento; este mundo largo, que nos rodeia, tem mulheres e homens que merecem o nosso reconhecimento.

Basta de humilhação!

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 984 de 8 de Outubro de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,11 out 2020 7:23

Editado porSara Almeida  em  12 out 2020 17:47

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